O ministro militante
Ao negar o pedido da campanha de Jair Bolsonaro para anular votos do segundo turno das eleições presidenciais, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, classificou a ação liderada pelo PL de Valdemar Costa Neto como "esdrúxula". Rejeitou-a como inepta - imprestável.
O toco era esperado. Não foi à toa que o advogado e ex-ministro do TSE Tarcísio Vieira de Carvalho, principal defensor da campanha de Bolsonaro, recusou-se a assinar a petição. (Ela foi apresentada pelo criminalista Marcelo Bessa.) O pedido não era só juridicamente "esdrúxulo", como apontou Moraes. Era politicamente radioativo.
Mesmo num esforço de boa fé, e esse esforço não é pequeno diante do contexto de questionamento sistemático, oportunista e antidemocrático das urnas eletrônicas, o trabalho apresentado pelo PL para justificar um pedido de tamanha gravidade não se sustenta. As explicações oficiais e de órgãos de fiscalização independentes acerca da lisura e da integridade dos votos superam, de longe, as questiúnculas apontadas pela consultoria de Valdemar. Mas não adianta apresentar fatos e dados sobre o assunto. Quem precisa acreditar em fraude, infelizmente, já acreditava antes mesmo das eleições, graças ao trabalho desinformativo incessante do bolsonarismo nos últimos quatro anos.
Moraes, portanto, tinha razão em rejeitar, por inépcia, um pedido tão aloprado. E aqui já se ignora que o presidente do TSE não distribuiu livremente o pedido entre os demais ministros da corte; pela lei, não é - ou era - um detalhe tão irrelevante. O problema central, como se tornou comum nas decisões do ministro, é que Moraes consegue errar mesmo quando acerta - quando tem razão. Como encara qualquer discurso bolsonarista ou ação jurídica bolsonarista como, necessariamente, um ato antidemocrático e ilegal, o ministro reage de modo politicamente desproporcional e juridicamente questionável.
O pensamento de Moraes e de alguns de seus colegas ganha aparente solidez filosófica graças à ascensão, entre eles, da teoria da democracia militante. Esta decorre, originalmente, do trabalho do alemão Karl Loewenstein. Escrevendo quando Hitler já destruía as instituições de seu país, Loewenstein defendia que os atores dessas instituições deveriam ter mecanismos mais fortes para conter uma ameaça democrática interna. E que precisavam agir para impedir a erosão do regime democrático, ainda que essas ações envolvessem restringir direitos fundamentais.
Por sua força moral, a teoria tem apelo. Num contexto de ascensão de líderes populistas iliberais, ganha especial atenção e adeptos - o que inclui ministros da Suprema Corte brasileira.
Mesmo sem adentrar em discussão aprofundada sobre as virtudes e os deméritos da teoria, é possível apontar que ela, uma vez considerada fonte legítima de pensamento, pode conduzir o sujeito que a acolhe a uma mentalidade de sítio. Nela, tudo, ou quase tudo, justifica-se. Afinal, se a própria existência do regime democrático está sob risco, e se é possível agir duramente para conter quem usa meios democráticos para atingir fins pretensamente autocráticos, agir passa a ser um imperativo moral, não uma opção. A decisão jurídica, no caso de juízes, inverte-se: a aplicação das leis passa a se subordinar a um imperativo moral incontornável com fim político específico. A oportunidade para erros e abusos alarga-se conforme o peso atribuído à ameaça. Como é o próprio juiz quem define e avalia a ameaça, a espiral moral rumo a um absolutismo judicial, no qual pensar cada caso cede lugar a punir sem pensar, torna-se uma possibilidade real.
A mentalidade de sítio produz decisões hiperbólicas, falhas e impolidas. O palavreado incisivo e as determinações rigorosas recebem o aplauso de quem apoia a noção - política - de que o TSE e o Supremo precisam conter, a qualquer custo, a "ameaça bolsonarista". Não se nega que, diante de casos difíceis, realmente difíceis, ministros e tribunais possam agir com cálculo e estratégia. Mas desde que com parcimônia e uso adequado das ferramentas legais disponíveis. (Foi o que fez Moraes ao exigir do PL uma nova petição, incluindo os votos do primeiro turno, que levaram Bolsonaro ao segundo e elegeram a maior bancada da Câmara.)
Assenhorar-se da defesa permanente do estado democrático de direito pode parecer uma postura nobre e republicana. Mas, sem a mínima autocontenção, conduz ao risco não desprezível de resultar em abusos que violam precisamente aquilo que se buscava proteger. Para não ir longe, basta verificar, como havia alertado o Bastidor, o uso indiscriminado de uma resolução do TSE para suspender indefinidamente, sem qualquer vestígio de devido processo legal, contas nas redes sociais de parlamentares. Tudo em sigilo - por que mesmo? - e fora do sistema eletrônico da justiça, o PJe. A tão citada "democracia militante" não parece caber no PJe.
A diferença entre rigor legal e punição política está no restante da decisão de Moraes. Há trechos como este: "A Democracia é uma construção coletiva daqueles que acreditam na liberdade, daqueles que acreditam na paz, que acreditam no desenvolvimento, na dignidade da pessoa humana, no pleno emprego, no fim da fome, na redução das desigualdades, na prevalência da educação e na garantia da saúde de todos os brasileiros e brasileiras".
Em seguida, o ministro, indignado com a postura do PL e disposto a punir de ofício o partido, determina que a sigla e as demais legendas da Coligação de Bolsonaro (PP e Republicanos) paguem uma multa de cerca de 22 milhões de reais por algo chamado "litigância de má fé".
Moraes chegou a esse valor ao estipular o valor da causa em aproximadamente 1,1 bilhão de reais. Como ele calculou esse total? É a soma do custo à Justiça Eleitoral de cada urna (4,1 mil reais) questionada pelo PL. O critério parece arbitrário. A causa - o pedido do PL - nada tem a ver com o custo das urnas. (O dispositivo do Código de Processo Civil citado por Moraes, o artigo 81, não contempla, salvo equívoco, o caso.) O ministro decidiu que a multa por litigância de má fé seria de 2% do valor da causa. Daí os 22 milhões de reais.
Como o nome sugere, a "litigância de má fé" ocorre quando uma das partes de um processo age de modo abusivo e desleal. Mesmo que haja uma indicação de litigância de má fé, como mentira ou a avaliação de que se pretende um objetivo ilegal, o possível litigante de má fé tem direito a se defender antes de sofrer a multa. E o valor da multa vai para a parte contrária. Os 22 milhões deveriam ser revertidos para a Coligação de Lula? Nada disso está na decisão de Moraes, embora esteja lá o artigo do Código de Processo Civil que prevê exatamente quais as consequências para o litigante de má fé. (Caso o ministro tivesse considerado que houve "ato atentatório contra a dignidade da Justiça", a parte prejudicada poderia ser o estado; as hipóteses previstas no mesmo CPC não se aplicam ao caso julgado por Moraes, e ele não cita o artigo correspondente.)
A multa de 22 milhões de reais aos partidos da Coligação de Bolsonaro assoma esdrúxula e arbitrária. E quem vai pagar a multa? Para quitá-la, o ministro determinou o bloqueio dos fundos partidários de PL, PP e Republicanos. Os fundos partidários são abastecidos com dinheiro público. E, segundo o artigo 833 do CPC, são impenhoráveis.
Além da multa, Moraes determinou que Valdemar e o consultor que assina o trabalho sobre as urnas sejam investigados pela Corregedoria do TSE por "tumultuar o próprio regime democrático". Não só. Como presidente do TSE, decidiu enviar o caso ao inquérito das milícias digitais, relatado por ele no Supremo Tribunal Federal. Valdemar e o consultor serão novos clientes desse inquérito. Moraes não explica por quê. Talvez nem precise. Seja no Supremo, seja no TSE, o ministro, parafraseando um de seus colegas, tornou-se o juízo universal do estado democrático de direito.
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