A fraude aloprada
Durou 48 horas o factoide criado pela campanha de Jair Bolsonaro com as inserções das propagandas eleitorais nas rádios. Mesmo repleta de engodos, exageros e mentiras, a confusão armada pelos bolsonaristas serviu a seu propósito político: tumultuou o pleito e minou ainda mais, entre milhões de brasileiros, a confiança no Tribunal Superior Eleitoral.
Não por coincidência, a patacoada começou na noite de anteontem (segunda, 24 de outubro), no auge do desgaste da campanha de Bolsonaro com a prisão de Roberto Jefferson. Os advogados do presidente apresentaram ao TSE uma petição esdrúxula. Nela, apontavam que rádios no Nordeste haviam veiculado, em larga escala, inserções a mais para Lula do que para Bolsonaro - os dois candidatos têm direito ao mesmo número de minutos de propaganda. (Leia aqui todos os documentos do caso.)
A linguagem usada na petição, e logo depois repetida por coordenadores da campanha de Bolsonaro, deu azo a um ciclo de desinformação intenso nas redes sociais. Os advogados descreveram que apresentavam uma "DENÚNCIA DE FRAUDE ELEITORAL". Assim mesmo: em negrito e em maiúsculas.
Não só. Afirmaram que a fraude já estava comprovada e fora "arquitetada" em favor da campanha de Lula. Como o leitor provavelmente sabe, os advogados não apresentaram evidências para sustentar uma acusação tão grave. Inseriram apenas trechos de amostra feita por uma empresa que dizia examinar as inserções na internet. Ou seja, a empresa realizava a pesquisa por meio de material coletado na transmissão digital (streaming) das rádios - e não nas frequências de radiodifusão, nas quais as propagandas eleitorais precisam ser veiculadas.
O trabalho apresentado, portanto, permitiria, se muito, apontar possíveis incongruências - um ponto de partida. Não havia qualquer evidência de que havia fraude, uma manipulação intencional, e, ademais, uma fraude em favor da campanha adversária. A base legal para a tal denúncia também era duvidosa. Indicava-se apenas artigo da resolução do TSE que prevê a reposição das propagandas em caso de erro.
O impacto político da palavra "fraude", no entanto, foi imediato. O presidente do TSE, Alexandre de Moraes, determinou rapidamente, em termos duros, que a campanha de Bolsonaro apresentasse em 24 horas provas da alegada fraude. Também alertou que a campanha de Bolsonaro poderia ser investigada por crime eleitoral, caso estivesse inventando fatos.
Na noite de ontem (terça, dia 25), os advogados de Bolsonaro responderam às exigências do presidente do TSE. Numa petição com palavras mais apropriadas, a "fraude eleitoral" em maiúsculas sumiu. O caso passou a ser chamado de "denúncia de notícias de irregularidades" - uma terminologia um tanto hostil aos algoritmos das redes sociais. "Irregularidade" não engaja tão bem quanto "fraude".
Os advogados da campanha anexaram relatórios preparados pelo mesmo analista. Continham erros rudimentares de informação, como as próprias rádios vieram a esclarecer hoje (quarta), e a mesma falha fundamental de metodologia (análise de streaming, não de radiofrequência). Para o marketing político adaptado à era digital, pouco importa: a mera alegação de "fraude" é suficiente para chocar, mobilizar eleitores e abastecer um ciclo ininterrupto de propaganda computacional que distorce a percepção da realidade.
Ainda na noite de terça, um fato aparentemente dissociado do caso da "fraude eleitoral" transcorreu em Brasília. O servidor Alexandre Machado, que trabalhava na área do TSE que acompanha as propagandas eleitorais, foi à Polícia Federal prestar depoimento. Disse que fora expulso do tribunal na tarde daquele dia. Atribuiu a exoneração ao que disse ser sua insistência de relatar, desde 2018, falhas na fiscalização das propagandas eleitorais.
Não é apenas a data que torna o depoimento para lá de suspeito. O termo tem somente uma página. Machado cita apenas um caso concreto. E essa citação, para quem conhece operações alopradas de campanha, diz muito. Ele afirma que recebeu email da rádio JM Online, na qual a emissora "admitiu" não ter veiculado cem inserções de Bolsonaro. E acrescenta que encaminhou o email à Ludmila Boldo, chefe de gabinete do Secretário-Geral da Presidência do TSE. Trinta minutos depois, diz, foi informado da exoneração.
A menção ao nome de Ludmila não parece fortuita. Ela é casada com um ex-chefe de gabinete de Moraes. A implicação torna-se evidente: Machado estava sendo retaliado pelo presidente do TSE pelo simples fato de fazer seu trabalho. Que prova maior haveria de existir de uma conspiração contra Bolsonaro no caso das "fraudes" das inserções? Como negar mais uma evidência de que Moraes trabalha contra a reeleição do presidente?
Não faltam aqueles dispostos a acreditar prontamente nas alusões nada sutis contidas no depoimento. Mas os fatos são inconvenientes. E subtraem a credibilidade do que disse Machado. Levantam mais suspeitas sobre o próprio servidor, e suas intenções, do que acerca das inserções da propaganda de Bolsonaro.
Machado é servidor concursado do Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal. Antes, foi jornalista. Estava cedido ao TSE, como admite, desde 2014. Se ele aponta falhas na veiculação de inserções desde 2018 e é ignorado há tanto tempo, por que só agora - a quatro dias do segundo turno - resolveu ir à PF? Foi mesmo em virtude da exoneração? Por que não antes? Por que citou apenas um caso e mencionou tão somente o nome de alguém ligado a Moraes? Por que não apresentou evidências de que alertava seus superiores acerca de problemas no setor em que trabalhava?
O depoimento se torna ainda mais suspeito diante do fato de que não cabe ao TSE fiscalizar ativamente as inserções nas rádios. É uma relação entre as campanhas e as emissoras, na qual a corte apenas colabora - a não ser que seja provocada judicialmente a arbitrar algum conflito. Machado sabe disso.
Também é suspeito o comportamento da PF no caso. É incomum que um depoimento espontâneo seja tão parco em informações - e que contenha apenas informações que podem ter valor político, não jurídico. O delegado Carlos Castelo Paes Lima Rodrigues parece não ter feito perguntas elementares ao servidor. Segundo fontes na PF, Machado passou horas depondo. Como ficar tanto tempo em oitiva e produzir relato de apenas uma página? Se o depoimento é maior e há outros elementos, por que a PF, em face da gravidade do caso e da publicidade conferida a ele, não explica o que ocorreu? É igualmente revelador que o depoimento de apenas uma página tenha sido disseminado quase que instantaneamente. (A PF não esclarece o que fez com o depoimento; se houve, por exemplo, abertura de inquérito para investigar algum crime, sabe-se lá qual.)
Ainda hoje (quarta), a rádio mencionada no depoimento esclareceu que a falha fora do PL. O partido do presidente, informou a emissora, deixou de enviar as inserções no começo do segundo turno. Diante disso, a rádio procurou a sigla, que regularizou a situação. Em dúvida se deveria veicular mais inserções, a emissora procurou o TSE ontem, no endereço de mail controlado por Machado. É um versão bem menos sinistra - e mais razoável - dos eventos. O servidor não entendeu o email? Improvável.
Abundam, portanto, dúvidas sobre as intenções, as circunstâncias e mesmo sobre o teor do depoimento de Machado à PF. Ainda assim, o comportamento do TSE hoje contribuiu decisivamente para aumentar o ciclo de desconfiança em relação ao tribunal.
A corte presidida por Moraes, como demonstrou o Bastidor, insistiu - e insiste - que a exoneração de Machado não tem relação com o caso da "fraude eleitoral", apesar das evidências assertivas em contrário. A assessoria do TSE apresentou versões divergentes e frágeis acerca da saída do servidor. Primeiro, tratava-se de uma mudança de rotina em razão da nova Presidência de Moraes. Depois, anunciou-se que Machado fora exonerado por suspeita de assédio moral - ainda a ser investigada.
O TSE mantém uma versão que desafia a inteligência de quem gostaria de acreditar na corte. Ao se comportar dessa forma, colabora na manutenção da narrativa de que tem algo a esconder. Como em outros momentos de uma eleição tensa, o tribunal comete erros que dão razão a seus críticos e fomentam um discurso que tende a se agravar nos próximos dias. A estratégia de Bolsonaro envolve tumultuar o processo eleitoral. Ele se considera vítima do TSE - e seus eleitores acreditam nisso.
Ao completar 48 horas, o ciclo que começou com a "DENÚNCIA DE FRAUDE ELEITORAL" se encerrou com a decisão de Moraes de arquivá-la. O presidente de TSE elencou os problemas metodológicos e a ausência de uma mísera prova de que uma só rádio tenha cometido "fraude" em favor de Lula. Moraes também gritou em sua decisão. Textualmente, ao citar um especialista que foi à internet rebater o trabalho da campanha de Bolsonaro, usando como fonte um perfil antibolsonarista no Twitter: "DIANTE DE DISCREPÂNCIAS TÃO GRITANTES, ESSES DADOS JAMAIS PODERIA SER CHAMADOS DE 'PROVA' OU 'AUDITORIA'". Ao menos não usou negrito.
Em vez de permitir um procedimento administrativo para apurar as suspeitas, por mais frágeis que elas fossem, e negasse o pedido para suspender inserções de Lula, Moraes considerou a petição “inepta” por falta de provas. O problema, porém, é que a “inépcia” por falta de provas não existe no rol das possibilidades para se declarar uma petição inepta (Art.330 do CPC). A Lei das Eleições determina que haja fatos determinados para a representação, como frisou o presidente do TSE. Mas Moraes inova, mais uma vez, ao declarar inepta a petição, citando dispositivos que não existem no CPC.
Nesse caso, como em tantos outros, o teor político da decisão se mistura ao teor jurídico - talvez aquele que se sobreponha a esse. Moraes estava diante de um dilema: se abrisse a investigação, mesmo que em bases extremamente frágeis, permitiria o intenso uso político dela. Mesmo sem provas, a campanha de Bolsonaro certamente usaria o caso para argumentar que a eleição lhe foi roubada, como já aludiu ontem. Ninguém razoável deseja essa bazófia hiperbólica. Sem boas opções jurídicas para matar o caso como gostaria, Moraes acaba, mais uma vez, cometendo uma gambiarra jurídica para indeferir o pedido da campanha de Bolsonaro.
Percorre-se, assim, um arco que expõe a contaminação política e estratégica na Justiça Eleitoral. Uma campanha entra com uma inexistente “DENÚNCIA DE FRAUDE ELEITORAL” e toma toco mediante uma inexistente inépcia por falta de provas.
Ademais, numa demonstração do desarranjo institucional do país, Moraes determinou que o caso fosse remetido ao inquérito das milícias digitais, relatado por ele no Supremo. (Trata-se de um monstrengo judicial assemelhado ao infame inquérito das fake news; foi nele, por exemplo, que houve a operação contra empresários bolsonaristas por troca de mensagens no WhatsApp.) A medida parece ser, novamente, uma demonstração de força política mediante ameaça implícita ao presidente - e não uma demonstração de compromisso com a lei e de respeito à Constituição.
A cada movimento de uma eleição definida pelos desafios de Bolsonaro à corte eleitoral, Moraes cai em arapucas dos estrategistas do presidente. Facilita, com seus exageros e atropelos legais, a missão de Bolsonaro de se tornar uma vítima aparente da Justiça Eleitoral - e, assim, questionar legal e talvez ilegalmente o resultado das urnas, caso perca as eleições.
Atualização às 10h05 de 27 de outubro de 2022: o texto foi alterado para incluir a análise acerca da inépcia por falta de provas na decisão de Moraes para indeferir o pedido da campanha de Bolsonaro.
Abaixo, os principais documentos do caso.
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