A petição de três horas
Bastaram apenas três horas para a Fiems (Federação das Indústrias do Mato Grosso do Sul) desistir de participar no Supremo Tribunal Federal do julgamento que trata da aquisição de terras brasileiras por estrangeiros. É uma decisão envolta em mistérios.
O presidente da entidade, Sérgio Marcolino Longen, entrou com pedido para que a Fiems ingressasse na ação como amicus curiae, termo usado para amigo de corte - posição destinada a quem tem interesse e conhecimento na questão julgada e pode colaborar acrescentando informações. A manifestação foi protocolada no STF no dia 7 de agosto, às 15h31.
Às 18h41 daquele mesmo dia, sem nenhuma explicação, os advogados que representam a Fiems, do escritório Raghiant Torres, enviaram novo documento em que comunicam a desistência. Não há na petição qualquer justificativa sobre o recuo.
O caso está no Supremo desde 2015. Ganhou novos e controversos capítulos ao entrar na disputa bilionária que opõe a J&F, holding controlada pelos irmãos Batista, à multinacional Paper Excellence. Ambas brigam pelo controle da Eldorado Celulose, localizada em Três Lagoas, no Mato Grosso do Sul. A empresa foi vendida em 2017 pelos brasileiros ao grupo da Indonésia.
Após uma série de derrotas arbitrais e judiciais, a J&F passou a usar recentemente a discussão sobre a posse de terras por estrangeiros como argumento para desfazer a venda da Eldorado à Paper.
Além de envolver tribunais em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Mato Grosso do Sul, a disputa chegou na OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) - que comprou a briga pela J&F -, no Congresso, no governo federal e em órgãos da administração pública, como o Incra, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. O órgão já se posicionou a favor dos irmãos Batista e contra a compra da Eldorado pela Paper. Depois, o corpo técnico recomendou uma nova análise, que ainda não foi feita.
Recentemente, por unanimidade, a Terceira Turma do TRF-4 atendeu os interesses dos irmãos Batista na disputa. Os desembargadores entenderam que a compra de terras rurais por estrangeiros envolve a soberania nacional e mantiveram a liminar que impede a transferência da Eldorado para a Paper.
Com a decisão do TRF-4, a Eldorado segue sob controle da J&F, a holding dos irmãos Batista, até que a primeira instância tome uma nova decisão sobre a liminar concedida no ano passado pelo desembargador Rogério Favreto.
É nessa confusão que a Fiems pediu para entrar e, de repente, saiu. Na petição apresentada para ingressar como amicus curiae, a entidade contrariava os interesses dos irmãos Batista. Disse que identificou “equívocos”, que, na prática, impedem “novos investimentos estrangeiros e comprometer aqueles já realizados em indústrias que utilizam terras rurais meramente para obtenção de insumos para a produção industrial”.
O documento, assinado pelos advogados Márcio Antônio Torres Filho, Lúcia Maria Torres Farias, Mariela Dittmar Raghiant e Vinícius Rios de Castro, não cita diretamente a disputa entre J&F e Paper. Mas usa argumentos já apresentados pelas partes. O interesse da Fiems no tema fia-se no fato de Mato Grosso do Sul ser o maior exportador de celulose do país.
A Federação das Indústria do estado questiona, por exemplo, o alcance da lei federal 5.709/71. Diz que há um entendimento equivocado e defende que a “interpretação literal e isolada que vem sendo feita pelas autoridades - de uma norma editada na década de 70, sob o regime militar de Ernesto Geisel e não recepcionada pela Constituição Federal do Brasil -, deve ser refutada por esta Corte, garantindo a manutenção e a continuidade de transações que são fundamentais para o ingresso de recursos externos na economia brasileira”.
Acrescenta que as autoridades públicas têm descumprido leis mais recentes que tratam de liberdade econômica e arremata ao afirmar que “ao impedir transações que tenham como objeto indústrias titulares de imóveis rurais, atacando os contratos que lhes dão subsídio, a Administração Pública simplesmente desrespeita o direito das partes contratantes de terem seus contratos e investimentos protegidos”.
“Tudo isso demonstra a grave multiplicidade de interpretações e consequente insegurança que permeiam o tema, afugentando qualquer investidor estrangeiro que queira contribuir com o crescimento do nosso país”, diz a petição de 14 páginas.
Na segunda manifestação, bastou uma lauda. Em dez linhas, os advogados anunciaram a desistência e desconsideram todos os argumentos que constavam na primeira petição.
O STF chegou a pautar a retomada de discussão iniciada em 2015 sobre a compatibilidade da lei de terras de 1971 com a Constituição de 1988, mas o tema ainda não voltou a julgamento. Caso a maioria dos ministros entenda pela validade da legislação, e a depender do escopo de uma eventual decisão, será uma vitória expressiva para os Batista. As consequências para os investimentos estrangeiros já existentes no Brasil tendem a ser devastadores. Nesse cenário, a decisão afastará novos investimentos estrangeiros em áreas tão diversas quanto infraestrutura e energia.
O Bastidor buscou esclarecimentos. Da assessoria da Fiems, ouviu que só o escritório Raghiant Torres teria informações sobre a desistência. Procurados, nenhum dos advogados se manifestou até a publicação deste texto.
Não explicaram a desistência nem se houve alguma influência externa na decisão. Interlocutores da J&F, com quem o Bastidor também conversou, negaram uma possível interferência.
Dirigente na CNI
Sergio Longen, além de comandar a Fiems, é um dos vice-presidentes da CNI (Confederação Nacional da Indústria). Em novembro do ano passado, tomou posse na entidade ao lado do presidente Ricardo Alban em cerimônia que contou com a presença do vice-presidente, Geraldo Alckmin, do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e de ministros, governadores e prefeitos.
Alban, o novo presidente da CNI, é próximo de petistas da Bahia -comandou a Federação das Indústrias do estado - e do governo Lula.
Antes mesmo de assumir a CNI, Alban foi elogiado publicamente por Lula, que o chamou de “um cara bom”.
“O Rui [Costa] já me falou: ‘Lula, ele é um homem de conversa, é um homem que pode sentar na mesa e discutir’”, declarou Lula em evento em Salvador em maio de 2023.
O movimento da Fiems ocorre em momento de reaproximação dos irmãos Batista com o poder público e de vitórias judiciais. Wesley e Joesley estiveram mais de uma vez com Lula desde que o petista voltou ao poder, foram beneficiados por uma Medida Provisória no setor de energia e conseguiram do ministro Dias Toffoli, do STF, a suspensão dos pagamentos da multa do seu acordo de leniência.
Leia os dois documentos protocolados em poucas horas:
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