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A lição da FGV

Diego Escosteguy
Publicada em 20/11/2022 às 06:00
Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

Sobreviveu por quase 48 horas a operação da Polícia Federal contra diretores da Fundação Getúlio Vargas, a FGV. Ainda assim, durou menos do que um dos eventos jurídicos promovidos pela instituição. Integrantes da FGV eram investigados pela suspeita de participar de uma organização criminosa que venderia pareceres jurídicos para ajudar no desvio de dinheiro do governo do Rio nas gestões de Sérgio Cabral. No final da noite de sexta, o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes suspendeu a operação deflagrada na manhã de quinta pela PF, batizada de "Sofisma"e autorizada pelo juiz substituto Vinicius Valpuesta, da 3ª Vara Criminal do Rio de Janeiro.

O Bastidor teve acesso aos principais documentos do caso. A maioria deles estão sob sigilo. Expõem um caso esdrúxulo do início ao breve fim. Começa com uma decisão frágil e confusa que autoriza a operação. Prossegue com o uso de um atalho processual que permitiu a um advogado próximo do ministro representar a FGV no caso e recorrer diretamente a ele numa ação que nada tinha a ver com a investigação. E se encerra com a decisão do ministro de transformar o pedido da defesa num habeas corpus, suspendendo a operação e as demais apurações correlatas acerca de possíveis ilegalidades cometidas por diretores de uma das instituições mais influentes nos tribunais superiores.

A pedido da PF e com aval do Ministério Público Federal, o juiz Valpuesta havia decretado, em agosto, medidas cautelares contra 29 integrantes da FGV. Autorizara bloqueio das contas bancárias de 14 dos investigados até o extraordinário limite somado de cerca de 486 milhões de reais - dinheiro que, segundo a PF, tem origem suspeita ou envolve lavagem, no Brasil e em paraísos fiscais, como as Ilhas Virgens Britânicas. Determinou busca e apreensão em endereços associados a eles.

O despacho de 43 páginas, ao qual o Bastidor teve acesso, é uma peça a ser decifrada em vez de lida. Nela, Valpuesta não diz quais crimes cada um dos investigados pode ter cometido - muito menos associa as evidências levantadas pela PF a esses possíveis crimes. Não há descrição mínima sobre como funcionaria a participação de cada um dos investigados na organização criminosa liderada por Sérgio Cabral.

Valpuesta limita-se a enfileirar fatos desconexos, tenham eles indícios de crimes ou não, sobre os dirigentes da FGV. Parece pinçar aleatoriamente informações descobertas pela PF, pelo MPF e pelo Conselho de Controle das Atividades Financeiras, o Coaf. Nesse conjunto de dados brutos, existem fatos que podem ser relevantes para uma investigação, sobretudo quanto a movimentações financeiras sem lastro aparente e mediante o uso de empresas de fachada no Brasil e em paraísos fiscais.

Os valores movimentados por dirigentes da FGV sob circunstâncias suspeitas e atípicas são expressivos, na casa de dezenas de milhões de reais. Mas o juiz não expôs na decisão sequer exemplos de como algumas dessas movimentações guardariam relação com atos desses diretores que possam constituir crimes. Sem uma concatenação mínima dos fatos, é impossível estabelecer uma hipótese sobre quem cometeu quais crimes - e por qual motivo. A decisão de Valpuesta é juridicamente tão fraca que, uma vez cumprida, garantiria duas coisas: a deflagração da operação - e a subsequente anulação dela.

Era tanta gente na lista de alvos que a PF pediu meses para deflagrar a operação. Na quinta, logo após a PF ir às ruas e à sede da FGV no Rio cumprir as buscas, o presidente da entidade, Carlos Ivan Simonsen Leal, convocou os serviços do advogado criminalista Rodrigo Mudrovitsch. Ato contínuo, algo incomum aconteceu. Em vez de recorrer ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região, instância imediatamente superior ao juiz da 3ª Vara, Mudrovitsch foi ao Supremo. Mas não com um pedido de habeas corpus, por exemplo, em nome de algum dos investigados. Atuou como representante da FGV, a entidade, numa ação cível que já tramitava no Supremo - um processo relatado pelo ministro Gilmar Mendes e sem relação direta, portanto, com a investigação federal no Rio.

O ministro é padrinho político de Mudrovitsch. Gilmar orientou Mudrovitsch no mestrado do advogado e participou da banca de doutorado dele. Mudrovitsch virou advogado de Gilmar em causas privadas. O criminalista conseguiu, junto ao ministro, trancar uma ação penal e soltar três de seus clientes, acusados de corrupção política em diferentes casos. (Gilmar nunca viu problema ético em julgar esses processos; disse reiteradas vezes não acreditar que esse tipo de proximidade possa torná-lo parcial ou influenciar suas decisões.)

Mudrovitsch coordenou a publicação de três livros em coautoria com o ministro, pelo IDP - faculdade fundada por Gilmar e na qual o advogado é professor. Recentemente, Gilmar foi decisivo para que o presidente Jair Bolsonaro indicasse Mudrovitsch ao prestigioso cargo de juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos - posição que o criminalista ocupa atualmente. Aos 37 anos, Mudrovitsch já é um dos advogados mais influentes de Brasília. Seu objetivo é seguir a trajetória de seu padrinho. Já admitiu a amigos que sonha em ser ministro do Supremo.

A FGV também tem laços profissionais, ainda que indiretos, com o ministro. Há anos apoia e patrocina eventos do IDP, como o tradicional Fórum Jurídico de Lisboa. Por meio do IDP, Gilmar Mendes construiu uma sólida relação com a academia portuguesa. É um dos artífices da troca jurídica entre Brasil e Portugal. Na FGV, os principais organizadores desse evento são Cesar Cunha Campos e Sidnei Gonzales; ambos eram investigados na operação Sofisma. Cesar Cunha Campos é diretor da FGV Projeto. Gonzales, que goza de excelente trânsito nos tribunais superiores, é diretor da FGV em Portugal.

Embora o ministro tenha se afastado da administração do IDP, permanece como sócio do instituto. Mantém presença na instituição e dá aulas nela. O advogado Francisco Mendes, filho de Gilmar, é diretor-geral do IDP. Francisco é amigo de Mudrovitsch. Foram colegas na Universidade de Brasília.

Um atalho processual

As relações entre Mudrovitsch e Gilmar, e entre o IDP e a FGV, são conhecidas na comunidade jurídica e em Brasília. A surpresa, no caso da breve operação Sofisma, foi o atalho processual escolhido pelos diretores da FGV. O processo no Supremo relatado por Gilmar em que Mudrovitsch representa a entidade é uma ação cível originária - uma ACO, no jargão da Justiça. Foi movida pelo Ministério Público do Rio perante o Supremo, em 2019, para tentar reverter uma liminar do Conselho Nacional do Ministério Público, que suspendia a reprovação de contas anuais da FGV. A fiscalização dessas contas cabe ao MP do Rio. É um processo, portanto, bem específico, em que o ministro arbitra uma disputa acerca da natureza e da extensão do escrutínio do MP em entidades como a FGV. (Uma fundação como a FGV não é uma empresa privada; pela lei, deve ser fiscalizada pelo Ministério Público. Ou deveria.)

A controvérsia, porém, já parecia resolvida. Ano passado, o CNMP julgou o caso e decidiu, em resumo, limitar a ação dos promotores. Consequentemente, o pedido de liminar do MP do Rio ao Supremo perdera sentido - ou objeto, como se diz na Justiça. No final do ano passado, a PGR argumentou pelo encerramento do processo. Gilmar mandou ouvir o MP do Rio. Em fevereiro, os promotores informaram que concordavam com o fim da ação. A Advocacia-Geral da União disse o mesmo. Em seguida, a FGV, por meio de Mudrovitsch, discordou. Disse que as limitações impostas pelo CNMP eram insuficientes. E que somente uma decisão de Gilmar poderia resolver a questão definitivamente.

Desde março, o processo no Supremo hibernava. Na noite de quinta, horas após a PF vasculhar os endereços dos dirigentes da FGV, Mudrovitsch, constituído como advogado da entidade para atuar na operação Sofisma, apresentou uma petição nesse processo ao ministro Gilmar Mendes. Nela, dizia que a investigação criminal contra os integrantes da FGV na Justiça Federal do Rio "usurpava a competência" do ministro e do Supremo. Era uma defesa criminal de pessoas físicas (os dirigentes da FGV) numa ação cível na Suprema Corte que envolvia uma pessoa jurídica relacionada (a FGV).

Novamente, o caminho natural para as defesas dos investigados passaria, em tese, por recursos aos desembargadores do TRF2, a instância revisora dos atos do juiz federal Valpuesta. No limite, em caso excepcional de violação de direito fundamental dos investigados, permitiria um habeas corpus perante a Suprema Corte. É razoável a dúvida: uma defesa que não tivesse a relação de Mudrovitsch com Gilmar e que não advogasse para investigados como os diretores da FGV, cujo prestígio perante o Supremo e os demais tribunais superiores é inegável, teria sucesso com esse atalho processual um tanto heterodoxo? Mesmo que os investigados tenham razão no que pedem, esse tipo de atalho processual é desejável ou aceitável?

Na petição, Mudrovitsch argumentou que a existência da ação no Supremo significava que não se sabia ainda quem poderia - e como - investigar os integrantes da FGV. Embora o processo no Supremo tenha sido movido pelo MP estadual do Rio para tentar reverter uma liminar do CNMP, o advogado disse que a ação do Ministério Público Federal - outro Ministério Público, portanto - na operação Sofisma espelhava o "revanchismo" dos promotores do Rio.

Mudrovitsch argumentou que os crimes investigados pela PF e pelo MPF na operação Sofisma são semelhantes a irregularidades apontadas pelo MP do Rio num caso em que os promotores pediram ao Tribunal de Justiça do estado, sem sucesso, o afastamento de diretores da FGV. Isso demonstraria, sugeriu o advogado, "um arranjo de condutas nos bastidores institucionais para que fosse possível atingir a Peticionante (FGV) por outros meios".

O advogado da FGV afirmou que os crimes atribuídos aos dirigentes deveriam ter sido investigados perante a Justiça estadual do Rio. Acrescentou que o caso nascera na Lava Jato do Rio e fora distribuído ao juiz Marcelo Bretas - que, por sua vez, disse que não cabia a ele tocar o assunto, redistribuindo a investigação por sorteio. Embora o caso tenha caído com outro juiz, seria mais um episódio em que a "Lava Jato" tocava uma investigação que deveria ser estadual. É uma argumentação bastante repetida por Gilmar nos últimos anos. Reflete-se em julgamentos do Supremo que, liderados pelo ministro, derrubaram investigações de corrupção política no Rio.

Menos de 24 horas depois, na noite de sexta, o ministro concordou com Mudrovitsch. Gilmar reconheceu que havia "aspectos formais" - o atalho processual - a serem posteriormente "equacionados". Mas expôs com clareza seu raciocínio sobre esse caso e outros do tipo: "A despeito das dificuldades inerentes à identificação do procedimento e do ambiente mais adequado para exame das teses deduzidas pela parte (FGV), é fato que as razões invocadas na petição inicial apontam não apenas para graves vícios formais na decisão impugnada, como também para uma manifesta violação de jurisprudência consolidada no âmbito do Supremo Tribunal Federal".

O ministro afirmou que, para ele, o mais importante é agir rapidamente para "conter excessos". Eis o pensamento de Gilmar: "Em situações como essa, tenho para mim que, sem prejuízo do posterior equacionamento de aspectos formais, o enfoque do Tribunal deve ser a imediata correção dos vícios perpetrados pelas instâncias ordinárias, sobretudo em se tratando de processos de índole penal. Afinal, ante a possibilidade de lesão a direitos básicos do acusado, não é dado ao Supremo Tribunal Federal hesitar diante de abuso de poder cometido por quaisquer autoridades públicas. Antes, compete-lhe agir com o rigor e a presteza necessários para conter excessos praticados na condução da persecução penal, de modo a inibir eventuais afrontas à liberdade do cidadão".

Para corrigir os "aspectos formais", o ministro alterou a natureza do pedido da FGV para um habeas corpus. Diante das graves ilegalidades que enxergou na operação, revogou as medidas cautelares contra os investigados, suspendeu a investigação e outras relacionadas aos dirigentes da FGV e, por fim, mandou dar ciência dos fatos às corregedorias do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público. Para Gilmar, os procuradores da República e o juiz Valpuesta participam do "reiterado descumprimento" das decisões do Supremo sobre a extinta Lava Jato do Rio.

Segundo o ministro, os crimes, se existiram, deveriam ter sido apurados perante a Justiça estadual. Envolveriam o governo do Rio, e não a União. Como ele suspendeu tudo, porém, não haverá investigação - seja na esfera federal, seja na Justiça estadual. As suspeitas de crimes na FGV restarão como isto: suspeitas, ainda que as evidências reunidas pela PF e pelo MPF merecessem um tratamento judicial mais sério e rigoroso. Talvez o caso da operação Sofisma possa ser discutido no próximo Fórum de Lisboa. Lições não parecem faltar.

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