Um erro de 420 milhões
Um erro da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a PGFN, mantido em sigilo nos últimos anos rendeu à União uma dívida de quase 420 milhões de reais. O valor deve ser pago à Dufry do Brasil e ao escritório de advocacia de Sergio Bermudes, que representa a empresa. Em poucos anos, a PGFN saiu da posição de credora da empresa, líder mundial em varejo de viagem, para a de devedora.
O processo, que correu em segredo de justiça na 28ª Vara Federal do Rio de Janeiro de 2014 a 2020 e chegou ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região em 2023, foi obtido com exclusividade pelo Bastidor. A corte negou os argumentos da Fazenda Nacional e determinou, assim como já havia feito a Justiça federal do Rio, o pagamento do precatório.
O ponto determinante para a derrota da União no caso ocorreu entre o fim de 2019 e início de 2020. Naquele período, aconteceu algo extraordinário: o procurador da Fazenda responsável pelo caso, Sérgio Luís de Souza Carneiro, perdeu o prazo para contestar a decisão da 28ª Vara que beneficiava a Dufry. Só ele tinha acesso aos autos na PGFN.
Em novembro de 2019, a corte do Rio de Janeiro havia determinado à Fazenda Nacional que impugnasse o pedido de cumprimento da sentença. Em dezembro, a União confirmou ter recebido essa intimação. Mas nada fez depois. Em 13 de março de 2020, a credora Dufry, por meio do escritório de Sergio Bermudes, pediu em juízo a expedição de precatório do crédito principal, de 419 milhões de reais.
Somente quatro dias depois, a Fazenda se manifestou. Dessa vez, representada pelo procurador Pedro Rodrigues Marques Schittini. Ele pediu, em caráter excepcional, “a concessão de derradeiro prazo de 15 dias". O procurador argumentou que seria necessário calcular o valor do precatório. Até então, a PGFN não havia contestado a composição dos valores.
Era tarde: já havia se passado o prazo de 20 dias para impugnação. Ficou caracterizada o que se chama no direito de "preclusão temporal", quando a parte não recorre da decisão no período estipulado.
Deu-se, desde então, uma série de tentativas de reverter o resultado e desobrigar a União de pagar um valor milionário corrigido pela inflação. Dos quase 420 milhões, 412 milhões vão para a Dufry e o restante para o escritório de Bermudes.
A PGFN passou a argumentar que houve cerceamento de sua defesa. O órgão disse que, quando a Justiça decretou o sigilo das peças, anos antes, liberou o acesso somente ao procurador que era responsável por acompanhar o caso. Trata-se de Sérgio Luís de Souza Carneiro, que faleceu no ano passado.
A PGFN, contudo, reconhece que o procurador teve acesso aos autos – documentos e cálculos da dívida – e admite um “fortuito interno”, caracterizado por um “incomum equívoco gerencial por ocasião do deslocamento do processo para outra divisão da Procuradoria”. O "fortuito interno" da Procuradoria da Fazenda Nacional não foi perdoado pela 28ª Vara Federal do Rio nem pelo TRF-2.
“Não se pode pretender a nulidade ou ineficácia de algum ato de comunicação processual que tenha como causa ato praticado pela própria parte, no sentido de omitir-se de informar o órgão judicial sobre um ato por ela praticado fora do processo, em sede administrativa”, escreveu o desembargador Alberto Nogueira Junior, do TRF-2, em maio do ano passado, ao concordar com a decisão da 28ª Vara do Rio. “Do contrário, a validade e a eficácia dos atos processuais praticados pelo juiz e pelos serviços judiciários dependeriam não da correção com que teriam sido feitos segundo as normas legais e regulamentares vigentes, mas sim da pura e simples vontade arbitrária da parte que se omitiu, e que então se veria beneficiada pela sua conduta omissiva.”
De 1 para 400
O processo começou há dez anos, quando a Dufry foi à Justiça questionar débitos relacionados ao Fundo Especial de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento das Atividades de Fiscalização, o Fundaf. É dele que saem recursos para financiar o reaparelhamento da Secretaria da Receita Federal e para intensificar a repressão às infrações relativas a mercadorias estrangeiras e a outras modalidades de fraude fiscal ou cambial.
A Dufry diz que foi surpreendida com a sua inscrição em dívida ativa de dois débitos correspondentes à diferença de valores recolhidos ao Fundaf. A empresa contestou a dívida ao dizer que o tributo não atendia aos requisitos constitucionais e legais. Pediu a nulidade da cobrança e a inexigibilidade dos valores, além da devolução do que foi pago indevidamente.
Na petição inicial, a defesa da Dufry citou expressamente dois débitos que, somados, chegavam a 1,6 milhão de reais. O valor foi usado pela PGFN em suas manifestações para contestar os 419 milhões pedidos pela Dufry.
A defesa da empresa, contudo, emplacou a tese de ilegalidade do Fundaf e pediu o ressarcimento dos valores pagos nos cinco anos anteriores à ação e aqueles feitos durante a tramitação. Os pleitos foram atendidos nas duas instâncias.
Em maio deste ano, o juiz Adriano Saldanha Gomes de Oliveira, da Justiça do Rio, determinou a suspensão do processo até a comunicação de depósito dos precatórios por parte da Fazenda Nacional. Todos estão de olho em um novo “fortuito interno”.
Atualização às 19h52 de 22 de julho de 2024:
Em nota, o escritório de Bermudes disse que os “valores devidos não resultaram de erro procedimental da Procuradoria da Fazenda Nacional” e que a Justiça reconheceu a cobrança indevida de tributo. Acrescentou ainda que a “União não perdeu prazo para impugnar, porque não havia o que questionar”. Leia a íntegra da nota abaixo.
Nas contestações da PGFN, no entanto, houve várias manifestações contrárias ao valor de 400 milhões, além do pedido de mais prazo para manifestação.
O escritório de Sergio Bermudes, à época, chegou a classificar os argumentos da PGFN como “malabarismo processual”.
O juiz Firly Nascimento Filho, do TRF-2, usou a palavra negligência ao tratar da atuação da PGFN.
Leia a íntegra da nota:
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