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Faz-me rir, Caixa

Alisson Matos
Publicada em 13/08/2024 às 06:00
Na negociação do Ilha Pura, os trâmites e valores são mantidos sob sigilo. Foto: Leticia Moreira/Folhapress

Numa operação bilionária conduzida desde 2022 pelo grupo do ex-presidente Pedro Guimarães, a Caixa Econômica Federal ajudou a repassar ao BTG, em condições altamente vantajosas ao banco de André Esteves, o bairro Ilha Pura, no Rio de Janeiro. No decorrer da negociação, a esposa de um dos vice-presidentes responsáveis pela transação trocou o emprego na Caixa pelo cargo de diretora do BTG.

A operação estruturada entre Caixa e BTG é sigilosa. Foi fechada definitivamente na semana passada. Envolve uma dívida bilionária. Foi omitida do público quando, há poucas semanas, o banco de Esteves e a Carvalho Hosken, dona do Ilha Pura, anunciaram que o BTG havia comprado o empreendimento. Trata-se de um conjunto de condomínios na Barra, construído inicialmente para abrigar os atletas nas Olimpíadas do Rio.

A Caixa passou a financiar o projeto da Carvalho Hosken em 2014. Na verdade, era um projeto da Carvalho Hosken em parceria com a Odebrecht. À época, o banco anunciou com orgulho que havia concedido o maior empréstimo imobiliário de sua história: 2,3 bilhões de reais. As garantias eram o terreno imenso do empreendimento e os apartamentos que viriam a ser construídos. A Caixa teria uma participação na venda deles.

Dez anos depois, o projeto deu errado - menos para o BTG. Alguns dos condomínios foram erguidos, mas logo veio a crise econômica e a quebra da Odebrecht. A Carvalho Hosken assumiu o empreendimento. Mesmo num mercado imobiliário forte como o do Rio, houve pouca demanda. O Ilha Pura micou.

A Caixa fez o possível e o impossível para ajudar a Carvalho Hosken, como atestam documentos internos do banco obtidos pelo Bastidor. Esperou. Não cobrou. Renegociou a dívida em 2018, por exemplo. Não adiantou: a Carvalho Hosken vendeu poucas unidades. Seguiu sem pagar o empréstimo. Logo, o valor da dívida superou o valor total possível de ser obtido com a venda de todos os imóveis - ao menos de acordo com a avaliação da Caixa.

Em fevereiro de 2021, numa dança previsível de interesses, o banco estatal comunicou a Carvalho Hosken que chegara ao limite. Decretou o vencimento antecipado da dívida. A construtora ofereceu entregar todo o empreendimento à Caixa e sair limpa do negócio. O que, evidentemente, não foi aceito.

O impasse, que estava nítido há anos para quem acompanhava a operação, pôs a Caixa na pior situação imaginável. Se assumir o empreendimento não era uma opção viável para recuperar o dinheiro, e sem ter quaisquer garantias com liquidez para amortizar a dívida, o banco teria que ir ao mercado com a Carvalho Hosken para buscar ajuda. E buscar ajuda significa, quase sempre, perder dinheiro.

É aí que surge o grupo de Pedro Guimarães, então presidente da Caixa. Entrava em campo a turma do Rio. Além de Pedro Guimarães, participaram da operação inicial de refinanciamento três de seus principais aliados: Celso Barbosa, vice-presidente de Atacado; Renato Silveira, subordinado de Celso e chefe da área de recuperação de ativos de Atacado; e Álvaro Pires, assessor de Guimarães.

Todos construíram ótima relação com o BTG e com a Carvalho Hosken - a construtora desbravou a Barra; é influente no Rio. Para quem acompanhou a negociação, o desfecho era óbvio: somente o BTG tinha os contatos, o apetite, o capital e a estrutura para assumir o empreendimento. A questão seria em quais termos. Ou seja, o quanto o banco de Esteves ainda apertaria a Caixa para ganhar mais dinheiro.

Naquele momento, surgiu o escândalo de assédio sexual e moral que derrubou Pedro Guimarães. Celso Barbosa e Álvaro Pires, dois dos amigos de Pedro, caíram junto. Sobrou apenas o único que era, de fato, funcionário de carreira da Caixa: Renato Silveira. A ascensão dele deu-se na gestão de Pedro Guimarães. Subiu. E lá ficou, como Superintendente Nacional de Recuperação de Créditos de Atacado. Hoje, prefere se intitular Head of Distressed Assets.

Uma coincidência marca esse momento da negociação da Caixa com o BTG. Assim como ocorreu na compra de uma dívida que a WTorre tinha com o Banco do Brasil pelo grupo de Esteves, a venda do Ilha Pura com o aval da estatal também aconteceu após a ida de um funcionário público para o banco privado.

Trata-se de Melissa Barros, esposa de Celso Barbosa, o ex-vice-presidente da Caixa. Dois meses após o marido deixar o banco, ainda em meio às negociações pela venda do Ilha Pura, ela passou a fazer parte do BTG. Antes, foi funcionária de carreira da estatal por 14 anos. Ato contínuo, segundo interlocutores próximos dos amigos Celso e Álvaro, ambos tentaram prospectar oportunidades de negócios no BTG e na Carvalho Hosken.

O BTG, que já detinha uma relação forte com a Carvalho Hosken, avançou nas tratativas com a Caixa. Ao lado do Bradesco, o banco de Esteves ajudou a Carvalho Hosken a se organizar financeiramente para vender o empreendimento do Ilha Pura à Enforce, empresa do BTG que conduz esse tipo de operação estruturada.

Conforme foi noticiado pelo Bastidor, um caso semelhante foi parar na justiça de São Paulo. A construtora WTorre acusa o BTG de cooptar funcionários públicos para ter informações privilegiadas. As dúvidas sobre a transação também chegaram à Câmara dos Deputados. Parlamentares encaminharam ao ministério da Fazenda questionamentos sobre a transação.

Desde o ano passado, o BTG e a Caixa trabalham silenciosamente nessa operação. No começo deste ano, o BTG recebeu a garantia de que a Caixa toparia avalizar a compra do Ilha Pura - o que significaria comprar, também, a dívida da Carvalho Hosken com a Caixa.

Pelos termos acertados, a operação de venda do Ilha Pura da Carvalho Hosken ao BTG dependeria do aval da Caixa. A Carvalho Hosken sairia do negócio e o banco estatal repassaria a dívida da construtora ao BTG. O banco de Esteves, por meio da Enforce, assumiria todas as obrigações do empréstimo junto à Caixa.

Claro que não seria o mesmo empréstimo, ainda que já renegociado e em período de carência. Seria um empréstimo mais vantajoso ao BTG, que negociou a ponto de virar a única opção da Caixa para recuperar parte da dívida.

E quais seriam os termos? Se até a existência da operação estruturada é mantida em sigilo, imagine os trâmites e os valores dela. Oficialmente, a Caixa diz apenas que “as decisões do banco são tomadas por colegiado e respeitam a governança da instituição. As operações de crédito e estruturação de dívidas são protegidas por sigilo bancário”. Curiosamente, o anúncio do empréstimo em 2014 não se preocupou com "sigilo bancário". A Caixa ignorou, em duas oportunidades, as perguntas sobre os envolvidos na negociação, as contrapartidas e as condições. Também não comentou a ida de uma funcionária para o BTG em meio às negociações.

O Bastidor, contudo, teve acesso a detalhes do acordo. Por ele, a dívida do Ilha Pura com a Caixa, calculada em cerca de 3 bilhões de reais, é assumida pelo BTG em condições altamente vantajosas. Há um desconto de 964 milhões de reais, entre bônus e dispensas de encargos. Dos 2,1 bilhões de reais restantes, o BTG precisa pagar uma entrada inicial de 1,2%. Ao menos na proposta encaminhada à apreciação da cúpula da Caixa, havia um mecanismo que permitiria ao BTG não pagar essa entrada.

A dívida não terá um indexador. Prevê-se que o valor restante será pago em 12 anos, com carência total de um ano e principal de quatro anos, a 2,9% ao ano. A Caixa libera todas as garantias e deixa de acompanhar o empreendimento, como fazia antes.

Reservadamente, um executivo da cúpula da Caixa a par do assunto diz que o negócio com o BTG foi bom para as duas partes, e não apenas para o banco de Esteves. O banco estatal encontrou, afirma ele, uma solução para um problema que não conseguiria resolver sozinho. Agora, terá a chance de recuperar ao menos parte da dívida - e num horizonte mais curto, visto que se espera que o ativo tenha investimentos e gere dinheiro logo. "Não adiantava executar. A Carvalho não tinha como pagar, mesmo alongando de novo o prazo", diz.

Esse executivo diz desconhecer a relação do grupo de Pedro Guimarães com o BTG e a Carvalho Hosken. Admite que Renato Silveira, o Head of Distressed Assets, foi o artífice da solução. "Mas é bom sempre lembrar que ninguém aprova nada sozinho na Caixa", afirma.

Procurado, Celso Barbosa se recusou a comentar a sua participação na negociação. Disse que não sabia da compra do Ilha Pura pelo BTG com o aval da Caixa. A sua esposa, Melissa Barros, não respondeu aos contatos de o Bastidor.

A assessoria da Carvalho Hosken respondeu que “não pode comentar nada sobre este assunto por questões jurídicas”. A Enforce não retornou aos contatos da reportagem.

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