A pérola de Guiomar

Alisson Matos
Publicada em 12/08/2024 às 15:48
A rigor, a atuação dupla pode caracterizar conflito de interesse, algo proibido pelo Código de Ética da OAB Foto: Reprodução

A advogada Guiomar Feitosa Mendes, sócia do escritório de Sergio Bermudes, está à frente de uma operação para destravar o pagamento de parte de precatórios bilionários de uma massa falida a um fundo de investimento. Ela defende, em processos distintos, tanto o fundo que detém o pleito bilionário contra a massa falida quanto credores da mesma massa falida – um desses credores já chegou a acusar o fundo de fraude.

A rigor, a atuação dupla pode caracterizar conflito de interesse, algo proibido pelo Código de Ética da OAB. Guiomar, porém, assegura que não há qualquer conflito. Diz que os interesses das partes – fundo e credores representados por ela – são “convergentes”.

O escritório de Sergio Bermudes, do qual Guiomar é uma das principais sócias, é um dos mais influentes nos tribunais superiores em Brasília. Guiomar é casada com o ministro Gilmar Mendes.

A massa falida em questão é a da usina Laginha, de Alagoas. Trata-se de uma das maiores e mais controversas falências do país. A Laginha faliu em 2012, após anos agonizando em recuperação judicial. Pertencia ao empresário e político João Lyra, que morreu em 2021. A falência arrasta-se há uma década. Segue repleta de passivos tributários e até trabalhistas. Mas há um tesouro em meio a tantas dívidas: precatórios que somam cerca de 3,8 bilhões de reais.

O fundo que Guiomar e o escritório de Bermudes defendem chama-se Pearl. É um FIDC – um fundo de investimento em direitos creditórios, veículo comum para transacionar precatórios. O Pearl foi criado em 2008, ao lado de outro veículo de investimento, como parte de uma operação em que Lyra cedia 45% dos direitos creditórios da Laginha. Eram créditos em IAAs, um tipo de indenização da União a usinas do setor sucroalcooleiro por supostos prejuízos na década de 1980.

Lyra, por meio da Laginha, fechou a transação meses antes de pedir recuperação judicial. Ou seja, afastou da estrutura de sua usina aqueles que talvez fossem seus ativos mais valiosos. Blindou os créditos que viriam a se tornar precatórios nos anos subsequentes. Pela natureza desse tipo de fundo de investimento (FIDC), não se sabe quem são seus cotistas. Dito de outro modo, não é possível saber a quem, especificamente, Lyra vendeu parte dos precatórios da Laginha. Fontes a par do assunto afirmam que a operação foi montada pelo Bank of America. Hoje, o fundo é administrado pela Oliveira Trust.

Uma cessão contestada

A partir de 2017, o então administrador judicial passou a contestar a cessão dos créditos ao fundo. Em 2019, houve uma nova negociação entre a massa falida e os fundos. Ficou estabelecido que 55% dos 3,8 bilhões de reais ficariam com a Laginha e os 45% restantes com o fundo. Essa transação da Laginha com o fundo Pearl foi contestada pela Fazenda Nacional naquele mesmo ano no TJ de Alagoas.

Em 2020, no Tribunal Regional Federal da 5ª Região, a Fazenda Nacional defendeu que a transação era "suscetível de causar lesão grave e de difícil reparação" e a classificou como fraude. O juiz do caso concordou com os argumentos e concedeu uma liminar em que acatou o pedido do órgão contra a cessão dos créditos. O magistrado considerou que a transação foi feita para fraudar a União.

Os questionamentos não pararam por aí. Em fevereiro de 2022, a Justiça de Alagoas suspendeu, liminarmente, a validade da transação com o Pearl. O pedido foi feito pelo administrador judicial da massa falida. Os juízes entenderam que havia indícios de que o fundo tinha ciência da nulidade do crédito e praticou fraude contra os demais credores. A interpretação é que tentaram obter uma vantagem com base em uma nulidade, violando a boa-fé objetiva.

Parte dos precatórios já foi liquidada e está em contas judiciais. Como se vê, o pagamento ao Pearl, que pode chegar a cerca de 1,6 bilhão de reais, está travado na Justiça de Alagoas e, também, no TRF5 .

Hoje, portanto, os interesses do Pearl e dos credores da massa falida são distintos. O fundo tenta, em diferentes esferas da Justiça, receber o dinheiro que já está em contas judiciais. Se o fundo receber o que pleiteia, sobrará um valor menor para a massa falida. Se sobrar um valor menor para a massa falida, sobrará um valor menor para credores dela. E, uma vez liquidada a falência e pagos os credores, sobrará menos, também, para os herdeiros de João Lyra – os últimos da fila. A não ser que haja um acordo entre todas as partes, o sucesso do Pearl em receber o valor pleiteado significará uma derrota financeira para a massa falida e seus credores, incluindo a União, o maior deles.

A investida no STJ

Esse contexto é necessário para entender por que a atuação de Guiomar pode configurar - sempre em tese - um conflito de interesse. Ela e outros advogados do escritório de Bermudes representam o fundo Pearl. E, desde abril deste ano, passaram a representar a ex-esposa de João Lyra, Solange Queiroz Ramiro Costa. Também cuidam dos interesses de quatro dos seis filhos de Lyra no inventário do usineiro – os dois herdeiros restantes romperam com os quatro atendidos por Guiomar.

Para tentar derrubar a liminar do TJ de Alagoas que bloqueou o dinheiro pleiteado pelo Pearl, os advogados do fundo recorreram ao Superior Tribunal de Justiça. O recurso chegou ao STJ em fevereiro deste ano. A defesa do fundo Pearl pede a liberação do dinheiro dos precatórios. Também quer que recursos de precatórios já enviados a Alagoas voltem à Justiça Federal de Brasília, onde tramitam os processos desses créditos. Insiste para que o caso seja deslocado de Alagoas para São Paulo, local em que o termo entre Lyra e o fundo foi fechado.

No STJ, Guiomar passou a defender formalmente o fundo Pearl em 22 de abril deste ano. Dois dias depois, a ministra Maria Isabel Gallotti disse que era ela a ministra responsável pelo caso. Havia uma discussão interna se seria ela a magistrada preventa, como se diz no jargão jurídico, para esse assunto.

Apesar da decisão de Gallotti, o então administrador judicial da Laginha recorreu. Quer que o caso fique com o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Guiomar e o escritório de Bermudes defenderam que o recurso permaneça com Gallotti. Ainda não há uma decisão definitiva. Mas, caso a ministra acolha liminarmente os argumentos de Guiomar, o dinheiro pleiteado pelo Pearl pode ser pago, a depender da extensão de uma eventual decisão de Gallotti.

O caso vai ao Supremo

Na frente de batalha em Alagoas, representando a ex-esposa Solange, Guiomar pediu que os desembargadores remetessem a falência ao Supremo Tribunal Federal. Argumentou que a maioria deles são suspeitos para julgar os recursos acerca do processo principal da massa falida.

O TJ de Alagoas manteve o caso no estado. Mas Guiomar recorreu ao Supremo. O caso caiu com o ministro Kassio. Ele deferiu o pedido para suspender o julgamento de todos os recursos da Laginha em Alagoas. Em termos práticos, a decisão de Kassio transformou o Supremo, pela primeira vez, em tribunal falimentar.

Enquanto defende o Pearl no STJ, Guiomar, além de acionar o Supremo com sucesso em nome de Solange Queiroz, recorreu ao Conselho Nacional de Justiça, também em nome de Solange, em defesa de decisões dos juízes que tocam o caso na primeira instância. Contestou ainda a atuação do ex-administrador Judicial da Laginha. Esse administrador, Igor Telino, que foi substituído pelo TJ de Alagoas em junho, era contra a transação da Laginha com o fundo Pearl. Há dois anos, obteve a liminar que ainda impede o pagamento ao fundo. (É a liminar que pode cair no STJ.)

A manifestação, considerada incomum, visto que a ex-esposa de João Lyra pouco ou nada teria a ver com um procedimento no CNJ, ocorreu em meio às suspeitas reveladas pelo Bastidor que recaem sobre a realização de uma correição extraordinária no processo, a mudança da comissão de juízes responsáveis pelo caso e a troca do administrador judicial da massa falida.

Em relação ao AJ, a defesa de Solange questionou a contratação do escritório Eugênio Aragão Advogados Associados para ajudar no processo. Disse que haveria uma remuneração multimilionária, na casa dos 200 milhões de reais, “para realizar um trabalho que cabia ao próprio administrador judicial”.

Afirmou, ainda, que a contratação não atendeu a interesse “de absolutamente ninguém”, a não ser do administrador judicial da época, do escritório Telino & Barros. O AJ, no entanto, diz que Aragão tem conhecimento de todas as áreas jurídicas.

Posições antagônicas

 O Pearl e parte da família Lyra, em meio à tramitação do caso, estiveram mais de uma vez em posições antagônicas em relação à ordem de pagamentos dos credores. Um exemplo ocorreu em 2022, quando um dos herdeiros, Guilherme José Pereira de Lyra, confrontou os interesses do FIDC.

O Bastidor teve acesso ao documento protocolado na 1ª Vara Cível da Comarca de Coruripe, em Alagoas. Nele, Guilherme José contesta um pedido do fundo para receber parte dos precatórios. “Inconcebível, portanto, que um credor tenha o privilégio de receber créditos na fonte, sem obedecer a gradação e a classificação legal”, dizia a peça.

O filho de João Lyra e Solange lançou várias dúvidas sobre o fundo Pearl. Acusou o grupo de promover "reuniões estranhas em todas as instâncias para fraudar a lei e tornar eficaz um negócio jurídico que não se sustenta à luz do direito nem da moral". Citou ainda a palavra fraude para impedir uma transação financeira para o fundo. Disse que o repasse prejudicaria os credores.

Ao Bastidor, Guiomar afirmou que o “fundo Pearl quer receber e a família quer pagar a todos os credores, bancos, inclusive à Fazenda Nacional e à Estadual”. Acrescentou que “não atuaria sem consultar o fundo e obter o devido consentimento” e que “caso surja futuro conflito, há contrato firmado prevendo solução aceita por ambas as partes”.

Guiomar ainda reforçou que “a maioria dos envolvidos anseia por um julgamento justo, técnico e célere” e que “a atuação protelatória e condenável de alguns tem retardado o andamento do processo e dificultado o esperado desfecho”. "Há uma convergência de interesses entre a maioria dos herdeiros, principais credores e fundos, para combater os desmandos praticados pelo ex-administrador judicial, empresários e outros envolvidos com manifestos interesses e movimentos escusos na falência", pontuou. "O interesse de todos é claro: a liquidação dos ativos para pagamento dos credores".

Procurado pelo Bastidor para comentar o caso, o advogado Igor Telino, o ex-administrador judicial da Laginha, disse, em nota:

"Não houve desmandos de nenhuma natureza. O que houve foi a adoção de medidas para preservar o patrimônio da Massa Falida contra condutas ilegais praticadas, dentre elas a destinação de mais de R$ 1,4 bilhão aos fundos que sequer comprovaram o cumprimento do contrato. Demais medidas adotadas foram de reintegração de posse e venda dos ativos que se encontravam nas áreas, através de procedimento público e transparente. 

Sobre a contratação do escritório Eugênio Aragão Advogados: ocorreu exclusivamente sob êxito a partir do que fosse definitivamente extinto a favor da Massa Falida. Sua contratação foi necessária porque antigos administradores judiciais se omitiram ao não combaterem o crédito tributário na oportunidade que deveriam fazê-lo. Em nenhuma hipótese os valores do êxito chegariam próximo de R$ 200 milhões. Esse número é fake news plantada por alguns herdeiros e seus representantes, tanto assim que apresentado sem qualquer referência."

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