Ausência milionária
O Superior Tribunal de Justiça anulou o resultado de uma disputa milionária num tribunal arbitral em São Paulo após o desaparecimento inexplicado do árbitro indicado pela parte perdedora. O Bastidor teve acesso com exclusividade aos autos de mais de 2,5 mil páginas.
O desaparecimento de Otávio Luiz Rodrigues Júnior, descrito por juízes que analisaram o caso como "deserção" e "abandono", foi fundamental para a reversão do resultado de uma disputa que começou na Câmara de Arbitragem do Mercado, ligada à B3, passou pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e chegou ao STJ no ano passado.
Otávio Luiz Rodrigues Júnior é professor titular do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, a USP. De currículo extenso, tem bom trânsito em São Paulo e Brasília. Mantém boas relações com ministros de tribunais superiores. É próximo de Dias Toffoli, com quem coordenou um livro. Foi conselheiro nacional do Ministério Público e da Agência Nacional de Telecomunicações, a Anatel. É do quadro da Advocacia-Geral da União, mas se licenciou em 2024.
O professor esteve no centro da discussão analisada pelo STJ. Em 2014, Rodrigues Júnior aceitou compor a arbitragem que opunha a companhia Guaçu Geração de Energia e a Areva Renewables Brasil, empresa que pertencia ao grupo francês Areva e atuou no Brasil em projetos de geração de energia, especialmente em usinas de biomassa. (A Areva saiu do Brasil em 2018.)
A controvérsia foi parar na Câmara de Arbitragem do Mercado, a CAM, em outubro de 2014 por causa de um contrato de 76 milhões de reais firmado entre as empresas anos antes para a construção de uma usina termelétrica em Aripuanã, no Mato Grosso. O acordo previa que a Areva seria responsável por projetar, adquirir os materiais e construir o empreendimento, entregando-o pronto para operação. Houve, contudo, divergências na execução.
A Guaçu, a contratante, argumentou que a usina foi entregue com atraso e falhas técnicas graves. Pediu indenização por prejuízos como compra de energia de terceiros, custos com reparos e tributos. Defendeu a nulidade da cláusula contratual que limitava a indenização a 10% do valor global do contrato. Disse ainda que houve inadimplemento contratual grave e pediu para que a outra parte pagasse as multas previstas no contrato. Feitos os cálculos, os valores pedidos pela empresa ficariam entre 60 milhões de reais e 70 milhões de reais. Se mantida a limitação da indenização a 10% do valor do contrato, contudo, seria no máximo 7,6 milhões de reais.
A Areva, a contratada, disse que a usina foi entregue conforme o contrato. Argumentou que os atrasos e as falhas foram culpa da Guaçu. Requereu pagamentos de faturas em aberto, ajustes de preço e indenizações por despesas adicionais, danos morais e retenção de equipamentos. Defendeu a validade da cláusula de limitação da indenização 10% do valor do contrato e pediu a condenação da Guaçu por violação ao dever de confidencialidade da arbitragem. Os valores seriam constituídos posteriormente, na fase de liquidação, com atualizações monetárias e cálculos técnicos.
Guaçu e Areva constituíram o tribunal composto por três árbitros, como é praxe em litígios de alta complexidade. Cada parte indicaria um e os dois escolhidos definiriam o terceiro, que atuaria como presidente. A Guaçu indicou o professor Otávio Luiz Rodrigues Junior e a Areva escolheu José Emílio Nunes Pinto. A presidência ficou com Eduardo Secchi Munhoz.
A contenda na CAM começou em 2015. As fases de uma arbitragem seguem uma estrutura semelhante à de um processo judicial, mas com maiores flexibilidade, celeridade e autonomia dos envolvidos. Depois de constituído o tribunal arbitral, vêm as manifestações iniciais, a instrução probatória, as alegações finais e a sentença.
As alegações finais foram feitas em maio de 2020. Após meses de prorrogações e adiamentos, em 16 de junho de 2021 o tribunal enviou nova carta aos envolvidos. Informava que os árbitros caminhavam para a conclusão do caso.
Onde está o árbitro?
O resultado chegou nos e-mails da Guaçu e da Areva em 20 de dezembro de 2021, conforme os autos. Com uma surpresa: na sentença emitida em 10 de novembro de 2021, constavam apenas dois votos - de José Emilio Nunes Pinto, indicado pela Areva, e o de Eduardo Secchi Munhoz, presidente do tribunal. Faltava o voto do terceiro árbitro, Otávio Luiz Rodrigues Junior, o escolhido pela Guaçu.
Otávio Luiz Rodrigues Júnior não deu explicações. No e-mail enviado pelo tribunal arbitral às partes, foi anexada uma certidão que tratava das tentativas de contato com ele. As buscas duraram de 1º de julho a 13 de dezembro de 2021.
Segundo a o tribunal arbitral, foram 13 tentativas em cinco meses de tentar fazer contato com ele por diversos meios. Houve envio de mensagens no Whatsapp e ligações telefônicas, nunca respondidas ou retornadas. Também foram enviadas correspondências à residência do árbitro. E-mails também foram encaminhados e ignorados.
Na última tentativa de contato com o árbitro, em 13 de dezembro de 2021, uma pessoa designada pelo tribunal foi à sua residência para a assinatura da sentença. Foi informada que ele estava em viagem até 19 de dezembro, um dia antes do resultado ser divulgado às partes.
A sentença foi, então, formalizada sem a assinatura de Rodrigues Junior. O presidente do tribunal, Eduardo Secchi Munhoz, em e-mail enviado à CAM sobre o resultado, mencionou a possibilidade de o resultado ter assinaturas de apenas dois árbitros.
A Guaçu acabou derrotada. Os dois votos dados – do presidente e do árbitro indicado pela Areva – foram a favor da Areva. A Guaçu foi condenada a pagar faturas em aberto à Areva, incluindo valores principais e encargos devidos.
Brigando fora da câmara
A Guaçu não aceitou e levou a disputa, até então na esfera privada, para a Justiça. Acionou a Justiça de São Paulo em 2022. Usou a ausência da assinatura do seu indicado como um dos argumentos para anular a sentença desfavorável.
Primeiro, em março de 2022, a Guaçu acionou a 1ª Vara Empresarial e de Conflitos de Arbitragem do TJSP. Requereu tutela de urgência para garantir a preservação de documentos e mensagens relacionados à atuação de Rodrigues Júnior, como e-mails e mensagens de WhatsApp enviadas no período de 10 de novembro de 2020 a 10 de novembro de 2021. No mérito, pediu a nulidade integral da sentença da arbitragem ou ao menos a parte em que foi condenada ao pagamento dos honorários advocatícios de sucumbência.
A Areva, por outro lado, defendeu que a ausência da assinatura de um árbitro não invalidaria a sentença arbitral e que não caberia a dissolução do tribunal.
Além da ausência de Rodrigues Júnior nas deliberações da arbitragem, a Guaçu passou a destacar possíveis impedimentos do árbitro. Afirmou que ele, por fazer parte do quadro da AGU, estava legalmente impedido de atuar, conforme orientação normativa de 2019 do órgão. Disse que, em vez de se declarar impedido, Rodrigues Júnior optou por um afastamento silencioso, sem renunciar formalmente, nem comunicar à câmara ou às partes.
Disse ainda que a decisão foi tomada sem a participação de todos os árbitros, como exige a lei e o regulamento da própria câmara onde a disputa tramitou. “A deliberação foi feita por um ‘tribunal de dois’, quando o modelo escolhido era o colegiado de três”, afirmou a companhia.
Ainda com o caso na primeira instância, os dois árbitros remanescentes - José Emílio Nunes Pinto e Eduardo Secchi Munhoz - renunciaram à função e declararam que nunca houve uma sentença arbitral concluída, apenas uma minuta.
Em dezembro de 2022, o juiz André Salomon Tudisco, 1ª Vara Empresarial e de Conflitos de Arbitragem, extinguiu o processo sem julgamento do mérito, com base na perda do interesse processual. Determinou, ainda, que a Areva arcasse com os custos processuais e honorários advocatícios, fixados em 10% do valor da causa.
A Guaçu, em fevereiro de 2023, levou o caso à segunda instância, na 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, do TJSP. Queria a análise do mérito e o cancelamento do resultado da arbitragem.
"Abandonou a arbitragem"
Em março de 2024, o desembargador e relator Cesar Ciampolini Neto, então presidente da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, anulou a sentença da arbitragem. Ele levou em consideração principalmente o sumiço de Rodrigues Junior. Escreveu que "restou incontroverso" que o árbitro "simplesmente abandonou a arbitragem, não prestando contas a quem quer fosse".
O magistrado ainda citou o impedimento. "Otávio Luiz Rodrigues Júnior participou de toda a fase instrutória, que perdurou por 4 anos e culminou com audiência de instrução havida entre 3 e 7/2/2020". Lembrou que o árbitro só foi renunciar formalmente após a sentença publicada.
"Viria a renunciar apenas em 7/4/2022. Ou seja, funcionou como árbitro até 7/4/2022, quando, desde 23/8/2019, não poderia fazê-lo. Neste contexto, de se proclamar que sua presença maculou de nulidade os atos nela praticados a partir de 23/8/2019. O Tribunal Arbitral, desde então, estava de fato dissolvido", escreveu o desembargador.
Também criticou os dois árbitros que, mesmo com o sumiço do colega, emitiram uma sentença que consideravam válida. Mudaram a versão, falando em minuta, só após o processo chegar à Justiça comum.
"Quanto aos demais árbitros, Eduardo Secchi Munhoz e José Emílio Nunes Pinto, sua conduta foi incompatível com o dever de diligência exigível de quem exerça a função", despachou. "Os atos praticados pelos árbitros restaram contaminados: por um deles, o desertor, houve negativa de prestação jurisdicional; pelos outros dois, nítida inobservância de seu dever de diligência".
A decisão foi unânime na 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, que condeou a Areva ao pagamento dos honorários de sucumbência fixados em 20% sobre o valor da causa, de 1 milhão de reais, resultando em um total de 200 mil reais devidos à parte vencedora a título de honorários advocatícios.
A "deserção" do árbitro
A Areva interpôs um recurso especial ao STJ em maio de 2024 para tentar reverter a decisão do TJSP. Nele, a empresa contestou a anulação total da sentença arbitral. Defendeu que a ausência de Rodrigues Junior foi formalmente justificada pelo presidente do tribunal arbitral e que a decisão proferida por dois árbitros permaneceu válida e eficaz.
A Areva ainda argumentou que a Guaçu não alegou oportunamente o impedimento do árbitro ausente, e que o colegiado arbitral agiu com diligência ao tentar manter o equilíbrio processual. A empresa sustentou que a condução do caso por dois árbitros, diante da inércia do terceiro, foi legítima e não comprometeu os princípios da imparcialidade, contraditório e isonomia entre as partes. Por isso, pediu ao STJ a reforma da decisão paulista, com o restabelecimento da sentença arbitral em sua totalidade.
Não adiantou. A ministra Daniela Teixeira, relatora do caso, e os demais ministros da Terceira Turma não atenderam aos pedidos da Areva, e mantiveram integralmente a decisão do TJSP. A sessão virtual foi concluída em 5 de maio e contou com os votos, além da relatora, dos ministros Nancy Andrighi, Humberto Martins, Ricardo Villas Bôas Cueva e Moura Ribeiro. A decisão foi unânime.
Os ministros consideraram que a ausência do árbitro no processo não foi formalmente comunicada às partes, e os dois outros árbitros prosseguiram com a instrução. Para o STJ, a conduta comprometeu a regularidade do julgamento arbitral.
"A decisão [do TJSP] fundamentou-se principalmente na deserção de um dos árbitros, integrante da AGU, por impedimento superveniente, o que comprometeu a colegialidade e a regularidade do julgamento. Além disso, os outros dois árbitros, mesmo cientes da deserção, enviaram às partes uma minuta de sentença como se definitiva fosse, violando os princípios do contraditório, da imparcialidade e da ampla defesa. O acórdão ressaltou que a ausência de prestação jurisdicional adequada torna nulo o procedimento", escreveu a ministra relatora.
O STJ preservou os honorários de sucumbência fixados pelo TJSP, no valor de 200 mil reais. Além de manter a condenação anterior, a relatora determinou a majoração dos honorários em mais 15% elevando o total devido para 230 mil reais, salvo aplicação de eventuais limites legais ou concessão de gratuidade de justiça.
A busca por explicações
O Bastidor procurou o professor Rodrigues Júnior nas últimas semanas. Primeiro, no dia 10 de junho, ele disse que não conseguiria responder aos questionamentos porque estava em meio a um concurso para professor titular do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP. A reportagem enviou seis perguntas. Questionou sobre o desaparecimento, a norma da AGU e os possíveis honorários.
Dias depois, na terça-feira (17), em uma conversa pessoal, em Brasília, afirmou que não foi localizado para votar na arbitragem porque estava em uma viagem para a Europa. Disse ainda que, sem a sua assinatura, a sentença é nula, conforme decidiu a Justiça. Na conversa, Rodrigues Júnior se esquivou e não respondeu por que não atendeu às 13 tentativas de contato feitas durante meses pelo tribunal arbitral. Garantiu, sem ser questionado, que não recebeu nenhuma remuneração.
Diante de novos pedidos de esclarecimento, na última sexta-feira (27), Rodrigues Júnior encaminhou uma nota. "Em novembro de 2014 , fui indicado como co-árbitro para o procedimento arbitral CAM 47/14, instalado perante a Câmara do Livre Mercado para solucionar uma disputa entre as empresas Areva e Guaçu. Na ocasião, encontrava-me licenciado para interesse particular (sem receber remuneração) da Advocacia-Geral da União. Renunciei à arbitragem em abril de 2022, inclusive renunciando aos honorários arbitrais a serem pagos".
Otávio Luiz Rodrigues Júnior foi aprovado no dia 11 de junho e se tornou professor titular do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP. Foi parabenizado no X pelo ministro Gilmar Mendes.
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