A base clandestina do Irã em São Paulo
A República Islâmica do Irã mantém uma base clandestina de operações em São Paulo com indícios de atividades de inteligência estatal, indica uma investigação especial do Bastidor conduzida nos últimos três meses. A reportagem monitorou o endereço e outros associados à rede iraniana em São Paulo. Obteve documentos comerciais, imobiliários e diplomáticos, além de cópias de processos cíveis e criminais contra os iranianos suspeitos. Teve acesso a relatórios reservados de inteligência de agências ocidentais e entrevistou, sob anonimato, fontes com conhecimento das atividades de inteligência de Teerã. A investigação também envolveu o rastreamento, em fontes abertas, das atividades digitais dos iranianos suspeitos de pertencer ao aparato de inteligência dos aiatolás xiitas e de seus laranjas brasileiros.
Desse conjunto de informações, emergem evidências fortes da existência de uma base clandestina do governo iraniano numa casa fortificada no bairro do Morumbi, em São Paulo. A suspeita da presença de agentes e ativos a serviço do aparato de inteligência do Irã na capital paulista é escamoteada por uma rede de empresas de fachada, com uso de laranjas e endereços falsos – uma rede da qual participam iranianos que detêm cobertura diplomática concedida pelo Itamaraty.
Essa rede funciona há, ao menos, dez anos, sob a aparente leniência do Ministério das Relações Exteriores e da Receita Federal. Até mesmo a Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, não emprega esforços para monitorar as atividades do serviço de inteligência do Irã em São Paulo – prefere concentrar seus recursos em Foz do Iguaçu, onde a atividade extremista de grupos como o libanês Hezbollah é antiga e notória.
A base iraniana em São Paulo é estratégica em termos logísticos e operacionais, sobretudo após a deflagração da guerra entre Hamas e Israel. Tanto Hamas quanto Hezbollah, apesar de suas diferenças, são grupos terroristas apoiados, em larga medida, pelo regime teocrático dos aiatolás iranianos. (O Brasil não considera os dois grupos organizações terroristas, ao contrário dos Estados Unidos e da maioria dos países europeus.) Hamas e Hezbollah não são meros títeres do Irã, mas a parceria estreita entre eles é inegável.
Conforme o conflito em Gaza se agrava, aumentam as chances de que Hamas, Hezbollah e Irã ataquem, ou ameacem reservadamente atacar, alvos israelenses fora da região. Por isso não houve surpresa com a operação da Polícia Federal ontem, na qual foram presas pessoas, segundo as investigações dos serviços de inteligência de Israel, recrutadas pelo Hezbollah para planejar e, eventualmente, conduzir ataques terroristas contra alvos judeus no Brasil.
Na América Latina, há uma antiga e sólida rede operacional compartilhada por Hezbollah e Irã. Por rede operacional, entenda-se endereços, empresas, veículos e estruturas de lavagem e remessa de dinheiro, armas e drogas. Essa relação foi fartamente documentada nas últimas décadas, notadamente depois dos atentados terroristas na Argentina, especificamente contra judeus, no começo dos anos 1990. Em 1992, o Hezbollah conduziu um ataque terrorista que destruiu a Embaixada de Israel em Buenos Aires, causando 29 mortes. Dois anos depois, sobreveio um atentado ainda mais grave, quando um carro-bomba adentrou a sede da Associação Mutual Israelita Argentina, a Amia. Os terroristas mataram 85 pessoas.
As investigações subsequentes produziram provas de que agentes do Hezbollah foram os autores dos ataques. Não há consenso sobre a extensão da participação do Irã nos atentados na Argentina, mas é indiscutível que o Hezbollah, para executar os ataques, usou a estrutura operacional e logística do Irã na América Latina, incluindo o Brasil e, mais especificamente, São Paulo. Como é de praxe no continente, os atentados tornaram-se uma questão política e ideológica. Ninguém foi punido por eles, e os familiares das vítimas esperam por Justiça há décadas, em vão.
A casa na rua Wagih
Esse contexto geopolítico e histórico é essencial para se compreender a relevância de uma casa na rua Wagih Assad Abdalla, em São Paulo (foto acima). A pequena rua funciona como um condomínio: há um portão na entrada, controlado por um funcionário alojado numa guarida verde. A base tem um sistema de câmeras de segurança, grades, muros altos e vidros fumê. A campainha anuncia com alarde qualquer visitante. Entre 10 de outubro e 31 de outubro, nas três ocasiões em que a reportagem esteve no local, ninguém atendeu a campainha. Os funcionários que cuidam da rua confirmaram que iranianos frequentam o local, e que há movimento de veículos lá. Não souberam ou não quiseram dar mais detalhes.
Em 10 de outubro, o Bastidor identificou três veículos na garagem da base – dois carros e uma moto (foto abaixo). Todos estão registrados em nome da World Halal Center, uma das empresas sediadas formalmente no endereço. Antes de pertencerem à World Halal Center, os veículos estavam em nome de Peyman Falsafi, iraniano que tem passaporte diplomático no Brasil. Falsafi, segundo análise em contas iranianas no Instagram, mantém relação com autoridades do serviço de inteligência do país persa. Fez carreira no Ministério da Agricultura do Irã e, até o ano passado, era dono formal da World Halal Center.
A World Halal Center e Peyman Falsafi integram a rede iraniana associada ao endereço na rua Wagih. A certidão de inteiro teor do imóvel, obtida diretamente pelo Bastidor junto ao cartório da 15 região de São Paulo em 27 de setembro, aponta que a casa está registrada, desde março de 2016, em nome do Consulado da República Islâmica do Irã (trecho abaixo). A República Islâmica do Irã, porém, não tem representação diplomática em São Paulo. Não há qualquer consulado do Irã no Brasil; há somente a Embaixada em Brasília. Nela, informa-se o mesmo ao telefone: não há consulado em São Paulo.
Para a Receita Federal, porém, o Consulado da República Islâmica do Irã existe (trecho abaixo). O CNPJ associado ao Consulado está aberto – e ativo – desde junho de 2013. O registro fiscal é inequívoco: “Representação Diplomática Estrangeira”.
O domínio do email de registro junto à Receita foi criado em Teerã e hospedava o site da Embaixada do Irã no Brasil. Nos números de telefone de contato indicados à Receita, funcionárias assustadas de um escritório de contabilidade asseguram não ter qualquer relação com o governo iraniano ou o CNPJ. Em cópias digitais do histórico do domínio atual da representação diplomática do Irã no Brasil, o Bastidor localizou ao menos dois documentos arquivados pelo governo iraniano que mencionam o endereço da rua Wagih como local de encontro de nacionais do Irã. Um deles:
O endereço formal do Consulado junto à Receita, contudo, fica na Avenida Morumbi. É o mesmo bairro, mas se trata de outro local, a poucos minutos da Rua Wagih. O imóvel desse endereço, porém, pertence há décadas a uma empresa de participações familiar sem conexão aparente com iranianos. As certidões desse imóvel e de imóveis adjacentes, também obtidas diretamente pelo Bastidor junto a cartórios paulistanos, não indicam relação com as operações da Rua Wagih. No endereço da Avenida Morumbi que deveria ser a sede do consulado, funciona uma casa de eventos corporativos. A reportagem esteve no local. Há uma placa com o nome da empresa, a Cosy Eventos (abaixo). Pelo interfone, uma funcionária mostrou surpresa com o registro da sede do Consulado do Irã. “Aqui é só uma casa de eventos, moço”, disse. De acordo com Cynthia Venâncio, uma das sócias da empresa de eventos, ela é inquilina do imóvel desde 2013. Confirmou que fechou o aluguel com brasileiros e que não há “nenhuma ligação com pessoas iranianas”.
O Bastidor perguntou à Receita Federal sobre o registro do Consulado e o fato do CNPJ estar ativo. A Receita se limitou a dizer que “não se manifesta sobre situações de contribuintes específicos”.
A relação do governo do Irã com a casa na rua Wagih é inquestionável. Mas, se o endereço não é reconhecido formalmente por Teerã, qual o propósito dele? A Embaixada do Irã em Brasília, por óbvio, não responde. Segundo fontes com conhecimento das atividades da inteligência de Teerã na América Latina, o endereço fornece cobertura a ações do governo iraniano, embora também sirva, eventualmente, a negócios da comunidade persa no Brasil, desde que autorizados pelos aiatolás.
Os irmãos Ghorbanian
O endereço da casa de eventos na Avenida Morumbi também era a sede registrada de uma das principais empresas da rede iraniana: a GBH Serviços. Essa empresa foi criada em 2012 pelos irmãos iranianos Mohammad Hossein Ghorbanian (acima) e Morteza Ghorbanian, por meio de procuração outorgada por eles ao brasileiro Mario Majikina. Logo em seguida, em 2013, a GBH Serviços comprou a casa na rua Wagih, por 1,2 milhão de reais, segundo os registros imobiliários e notariais. Em 2016, repassou a propriedade da casa ao Consulado do Irã, por meio de uma “doação” de 3,2 milhões de reais. Frise-se que não há registro de qualquer pessoa no número de CNPJ reservado pela Receita ao Consulado.
Em ação trabalhista movida em 2016 contra os irmãos iranianos, obtida pelo Bastidor, Mario Majikina afirmou ter sido laranja deles na criação da GBH Serviços e na administração de outra GBH – a GBH Comércio, também do mesmo grupo. Comprovou que era apenas motorista e que fora ludibriado a assinar documentos de participação nas empresas. Ganhou o processo em 2017 e foi retirado das sociedades por decisão judicial.
Quando usaram o motorista brasileiro para criar a GBH Serviços, os irmãos Ghorbanian tinham pouco mais de 20 anos. Haviam chegado ao Brasil dois anos antes. Mohammad passou por estudos de cultura islâmica em Qom, principal centro de doutrinação do regime. Logo os dois criaram as empresas GBH: GBH Serviços, GBH Viagem e GBH Comércio. Todas eram sediadas no endereço da casa de eventos no Morumbi. Nenhuma parece ter efetivamente funcionado como negócio legítimo.
Havia – há – uma quarta GBH: a GHB Islamic Center, uma entidade sem fins lucrativos criada em 2013 por um dos irmãos Ghorbanian. A GBH Islamic Center é sediada na casa da rua Wagih. Na prática, a ausência de atividade no site e na página dela no Facebook, aliado ao endereço falso, indica que seja mais uma entidade de fachada criada, ao menos formalmente, pelos irmãos Ghorbanian. Eles mantiveram relações comerciais com iranianos residentes no Brasil envolvidos em comércio exterior e compra internacional de petróleo.
Ao menos um dos irmãos voltou para Teerã após as empresas acumularem dívidas e processos. Antes, doaram a casa da rua Wagih ao Consulado.
A inteligência Halal
Além de abrigar empresas de fachada e servir de endereço residencial formal para múltiplos iranianos no decorrer dos anos, a casa na rua Wagih sedia as operações de Halal do Irã no Brasil. Halal é o processo pelo qual se certifica que o alimento produzido observa os ritos islâmicos, de modo a ser seguro para comer. Esse tipo de certificação requer um clérigo.
O governo xiita do Irã controla a importação Halal nos países que fazem negócios com o país, como o Brasil. Historicamente, o regime de Teerã também usa as estruturas da operação Halal como cobertura para atividades de inteligência, lavagem de dinheiro e terrorismo. Foi o caso na Argentina, segundo as provas reunidas nas investigações dos atentados em Buenos Aires e de um ataque frustrado ao aeroporto John F. Kennedy, em Nova York.
Nos últimos dez anos, empresas de Halal com sede na rua Wagih foram abertas e fechadas sucessivamente, normalmente com um a dois anos de duração. Entre elas: Halal Center of Iran, Halal World Serviços e World Halal Center, a mais recente e ainda aberta. Após abrir a World Halal Center em janeiro de 2021, Peyman Falsafi, o funcionário de Teerã com carteira diplomática, a repassou a Hamzeh Kalantari em abril de 2022. Kalantari chegara ao Brasil em fevereiro, também sob imunidade diplomática. Nos registros da Junta Comercial de São Paulo, Kalantari se descreve como empresário.
No site da Câmara de Comércio Brasil-Irã, contudo, Kalantari aparece como o clérigo responsável pelo Centro de Supervisão de Abate Halal no Brasil. Há dois telefones para contato com o iraniano. O Bastidor ligou em ambos; duas pessoas diferentes atenderam. Nenhuma era Kalantari. Os trabalhadores da rua Wagih e vizinhos nunca ouviram falar tanto de Kalantari quanto de seu antecessor, Peyman Falsafi.
O Bastidor procurou insistentemente a Embaixada do Irã em Brasília, para que o governo de Teerã esclarecesse as atividades desenvolvidas em São Paulo e explicasse a relação com a casa na rua Wagih. No dia 10 de outubro, por telefone, um funcionário que se identificou como William disse apenas que não há consulado do país em São Paulo. Em 19 de outubro, a reportagem enviou e-mails para o embaixador Hossein Gharibi e para a Embaixada, com novos questionamentos. Em nova ligação, o mesmo funcionário disse que o prazo para retorno era de 48 horas. Ao todo, o Bastidor encaminhou oito perguntas às autoridades iranianas. As respostas, no entanto, nunca chegaram.
O Itamaraty também foi contactado em mais de uma oportunidade. Não respondeu.
Com reportagem de Alisson Matos
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