O setor da jogatina
O poder do dinheiro fácil venceu: Brasília está de cócoras para os interesses da turma bilionária da jogatina digital. Não há um ator político ou jurídico de expressão que jogue abertamente contra as bets e os cassinos online. Ninguém aposta mais contra as casas de prejuízo certo.
A legalização da jogatina durante o governo Temer foi patrocinada pelo centrão. É o principal braço político da jogatina. A regulamentação das bets, incluindo cassinos online, veio ano passado, por sanção do presidente Lula, após articulação dos grupos da jogatina com o mesmo centrão.
O governo Lula criou uma secretaria no Ministério da Fazenda para cuidar da jogatina. Recentemente, diante do previsível - altamente previsível - surgimento de operações policiais expondo a participação da jogatina em fraudes e lavagem de dinheiro de facções criminosas, como no caso da influenciadora Deolane Bezerra, o governo publicou uma portaria para tornar ilegais as bets que não peçam autorização até o fim deste mês.
A Fazenda diz que a medida é só o começo de uma investida mais rigorosa sobre a jogatina ilegal - diga-se, a flagrantemente ilegal. Haddad foi a única autoridade a se manifestar com mais ênfase sobre o problema das bets. Uma “pandemia”, como definiu.
A normalização do “setor”
A crítica do ministro da Fazenda e o trabalho sério de alguns poucos funcionários numa secretaria da pasta são insuficientes para incomodar o que já se chama hoje de “setor”. O termo ajuda a normalizar como atividade econômica séria um “setor” que extrai dinheiro dos mais pobres para enriquecer, com margens obscenas, os donos das plataformas. Não são poucas as bets que pertencem a criminosos, como demonstram operações dos Ministérios Públicos estaduais. Ou que têm relação indireta com criminosos, seja como fonte de receita, seja como ferramenta de lavagem, seja, por fim, como combinação das duas coisas.
A conexão evidente da jogatina online com o crime organizado põe a agenda de “regulamentação” das bets em colisão com a agenda de combate firme a facções como o PCC. São pautas contraditórias. Qualquer política séria de combate às facções criminosas organizadas requer a asfixia financeira delas. E a asfixia financeira delas requer, entre múltiplas linhas de ataque, o combate à jogatina digital.
O PCC e o Comando Vermelho têm várias unidades de negócio além do tráfico de drogas. Conseguiram expandir-se para mercados em que o dinheiro é fácil e a lavagem dele, eficiente. Distribuição de combustíveis, contrabando de cigarros e de armas, marketing digital, meios de pagamento: não faltam operações lucrativas.
A fiscalização impossível
Quem conhece o mercado da jogatina e o poder imenso dos bilhões que o “setor” movimenta sabe que é uma ilusão fiscalizar as bets e os cassinos. A vasta maioria das operações ocorrem pela engenharia com meios de pagamento e instrumentos como Pix, boletos e cartões pré-pagos, entre outras soluções criativas.
A visibilidade é mínima, e isso quando ela existe, para os bancos, para a Receita, para o Banco Central e para o Coaf. No Brasil, o mundo da jogatina se cruza com o mundo dos meios de pagamento opacos para criar um ambiente perfeito de financiamento de criminosos e lavagem de capitais. Proibir apostas com cartão de crédito é uma medida necessária, mas meramente paliativa.
Lucro de poucos, miséria de muitos
Já seria muito, mas a jogatina online não se restringe a um problema de segurança pública. É também um problema social, econômico e de saúde pública. Quem mais joga dinheiro fora são os mais pobres e mais jovens, influenciados por uma publicidade rica e tóxica, que se infiltrou no mercado de comunicação.
De Deolane a podcasters, passando por grandes influenciadores e até os maiores grupos de mídia do país, todos querem um pedaço dessa grana. Afinal, é simples: quanto mais gente jogando, mais dinheiro entra. Para ter muita gente jogando, é necessário usar à larga o marketing digital. É por isso que o leitor provavelmente depara o tempo inteiro com anúncios, identificados ou não, de jogatina. Para capturar esse público, as bets precisam investir em futebol e programas de entretenimento. E investem.
O lucro de poucos, de quem está na parte da extração do dinheiro, dos donos da jogatina aos times de futebol e aos que ganham com patrocínio, corresponde à miséria de muitos. De um contingente ainda difícil de calcular de jovens pobres. Em vez de consumir ou poupar, gastam com roletas digitais. Muitos já se endividam e outros tantos se viciam. A destruição de famílias e vidas é a consequência lógica e já conhecida do crescimento do “setor”. O efeito na economia é forte, segundo bancos e varejistas. As estimativas ainda são incipientes, mas já colocam o número de endividados na casa dos milhões. Eles são o motor dos 100 bilhões - também um palpite educado dos bancos - movimentados anualmente pela jogatina.
Quem garante ser possível regulamentar e fiscalizar a jogatina digital certamente não apostaria um centavo do próprio dinheiro na vitória de um mercado com “jogo legal” e “publicidade responsável”. Se a cada dia fica mais difícil evitar o triunfo da jogatina no Brasil, fica também mais difícil alegar ignorância sobre os custos sociais, criminais, políticos e econômicos das bets.
O silêncio de Brasília
Diante da magnitude do problema, é notável o silêncio de tantos. O Congresso age como departamento institucional das bets. O governo Lula, incluindo o presidente, e a esquerda se calam. O Ministério da Justiça e a Advocacia-Geral da União dão de ombros. Na direita, é a mesma coisa: Jair Bolsonaro e sua base nada têm a dizer sobre o assunto.
No Ministério Público, também impera a apatia e o desinteresse. O procurador-Geral da República, Paulo Gonet, não parece nem um pouco preocupado. É raro ouvir procuradores que demonstrem inquietação com as bets. O mesmo vale para a cúpula da Polícia Federal.
No Judiciário, sobretudo no Supremo, há um pandemônio para lidar com Elon Musk e o X. A rede do bilionário afeta diretamente os ministros. Mas prevalece indiferença quanto à jogatina digital - um problema que afeta diretamente milhões de pessoas pobres.
Este é o problema dentro do problema: não existe lobby em Brasília dos milhões de brasileiros que sofrem com a jogatina. O lado que, por definição, só perde não está sequer na mesa. O lado dos poucos que ganham organiza o jogo, põe a mesa, ajuda a decidir quem nele arbitra e financia impunemente a cascata de que o tigrinho não tem dentes.
Antes, bicheiro e operador de caça-níquel eram clientes da polícia. Agora, são um “setor”.
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