A implosão da Abin

Diego Escosteguy
Publicada em 20/10/2023 às 16:00
Sob Bolsonaro e Alexandre Ramagem, a Abin foi usada como instrumento de espionagem de inimigos políticos Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

A investigação da Polícia Federal sobre a suspeita de uso ilegal de um sistema de rastreamento de celulares empregado pela Abin provavelmente destruirá o precário e rudimentar aparato de inteligência de estado do Brasil. Caso a PF tenha evidências que sustentem os crimes descritos na operação Primeira Milha, deflagrada hoje, existirá a confirmação de que Jair Bolsonaro, por meio de um grupo que inclui militares e delegados da PF, capturou a Abin para fins políticos e privados - todos evidentemente ilegais.

Nesse momento, a PF se concentra no uso abusivo do sistema First Mile, da empresa israelense Cognyte. Esse software permite a geolocalização de alvos por meio da comunicação de celulares com torres de telefonia. Trata-se de uma ferramenta que pode ser utilizada de modo legítimo pelo sistema brasileiro de inteligência, como acontece em outros países. Ele é útil para monitorar pessoas que representem possíveis ameaças à segurança nacional, como integrantes hostis de agências estrangeiras de inteligência e suspeitos de associação a organizações terroristas, como Hezbollah e Hamas. Também pode servir para proteger dignatários em trânsito.

O uso legítimo do sistema da Cognyte requer a manutenção de logs precisos e auditáveis, para diminuir o risco de ilegalidades e permitir uma fiscalização efetiva interna (na Abin) e externa (no Congresso). A empresa oferece essa auditagem. Cabe agora à PF demonstrar que agentes e diretores da Abin adulteraram os logs de modo a encobrir, como divulgado pela corporação, o uso ilegal do sistema para monitorar autoridades, advogados, jornalistas e até próprios integrantes da agência.

No começo do governo Bolsonaro, de acordo com oficiais de inteligência, o acesso ao First Mile era restrito à Diretoria de Operações de Inteligência, comandada pelo experiente oficial Paulo Maurício Fortunato. A ascensão de Paulo Ramagem, delegado da PF da confiança de Bolsonaro, mudou os métodos de trabalho na Abin. O novo diretor da agência tomou uma decisão crucial: estendeu o acesso ao First Mile a agentes da PF levados por ele ao órgão - todos eles, naquele momento, alocados fora da Diretoria de Operações.

Esses agentes da PF passaram a ter permissão para coordenar o Sistema Integrado de Nomeações e Consultas, ou Sinc, dentro da Abin. É nele que se pesquisam pessoas e empresas com relações com o governo, como indicados a cargos públicos. É uma atividade próxima do background check. Ou seja, não tem a mesma relevância das operações de inteligência. Não há razão para que esse setor pudesse ter acesso a uma ferramenta como o First Mile.

As pesquisas eram supervisionadas pelo agente da PF Marcelo Bormevet, levado ao cargo por Ramagem. Havia outros seis parceiros de Bormevet na execução dessas tarefas. Não se tem notícia de que esses personagens tenham sido alvo da PF.

Se confirmada por evidências até agora mantidas em sigilo, a espionagem ilegal por meio do First Mile tem potencial de conduzir a PF a outras atividades suspeitas da Abin nos anos de governo Bolsonaro. Nos últimos dois anos, o Bastidor manteve contato reservado com oficiais de inteligência. Eles expressaram sistematicamente preocupação com o potencial abuso do aparato de inteligência e frustração com a falta de fiscalização por parte da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência.

Oficiais de inteligência relataram suspeitas de operações clandestinas no Rio de Janeiro, estado no qual Bolsonaro mantinha pessoas de confiança na estrutura da Abin. Os relatos envolviam detalhes operacionais, como uso de drones, motos equipadas com câmeras especiais e pagamentos a fontes humanas (informantes). As operações clandestinas guardavam relação aparente com a segurança pública em comunidades do Rio ocupadas por organizações criminosas. Embora houvesse uso da estrutura da Abin, sobretudo recursos financeiros, não havia, no jargão da área, produtos - relatórios disseminados pelo Sistema Brasileira de Inteligência, como determina a lei.

As suspeitas foram comunicadas ao Congresso, que nada fez. Procurado pelo Bastidor em abril de 2022, o general Augusto Heleno, que comandava o Gabinete de Segurança Institucional, negou conhecimento das atividades clandestinas. Na mesma época, a confirmação de Victor Felismino Carneiro como diretor-adjunto da Abin causou indignação entre os oficiais de inteligência. Carneiro era superintendente da Abin no Rio no período das atividades suspeitas em comunidades cariocas. Ele é do grupo de Alexandre Ramagem, principal ativo de Bolsonaro na Abin no decorrer de seu governo. Seu pai é presidente do Clube Militar.

Há uma testemunha-chave das operações clandestinas no Rio e da verdadeira extensão do uso político da Abin: Paulo Maurício Fortunato, alvo da operação de hoje, aquele que foi diretor de Operações no governo Bolsonaro. No governo Lula, ele ocupava a Secretaria de Planejamento da Abin - era o número 3 da agência, em resumo. Na verdade, Paulo Maurício, um oficial de inteligência experiente, é um arquivo vivo dos espiões brasileiros. Ele tem conhecimento profundo e amplo das atividades operacionais da Abin nas últimas décadas. Não era do grupo bolsonarista. Ao contrário: entrou em choque com Ramagem e sua turma, precisamente em razão das suspeitas de desvio de finalidade do aparato da Abin.

Paulo Maurício tinha acesso ao orçamento e aos sistemas da Abin - acesso e controle. Manuseava o pagamento de fontes humanas, talvez a tarefa mais sensível e confidencial de uma agência de inteligência. Paulo Maurício conhece a identidade das fontes e quanto elas receberam. Esses pagamentos quase sempre são feitos com verba secreta, mediante dinheiro em espécie - reais, dólares e euros, a depender do informante. (A PF apreendeu grande quantidade de dólares com Paulo Maurício; ainda não se sabe a origem do dinheiro.)

Nos últimos anos, oficiais de inteligência disseram ao Bastidor que estavam preocupados com a falta de controle no uso da verba secreta. As operações sob supervisão do grupo bolsonarista, notadamente agentes da PF ligados a Ramagem, não tinham fiscalização e, ademais, subtraíam recursos das atividades mais essenciais à Abin: o monitoramento de grupos extremistas em São Paulo e na tríplice fronteira.

Segundo fontes a par do caso ouvidas nos últimos anos pela reportagem, o uso da verba secreta foi objeto de intensa disputa dentro da agência. Oficiais de inteligência, como Paulo Maurício, eram contra o pagamento de fontes humanas no Rio, cujo aparente propósito envolvia segurança pública do estado. Segundo essas fontes, Paulo Maurício se manteve contrário a essa decisão. Ela resultava em algo grave: que informantes em Foz do Iguaçu deixassem de receber pagamentos. Vencido, Paulo Maurício pediu aposentadoria. A decisão do grupo bolsonarista debilitou severamente a capacidade da Abin de obter inteligência de estado na região mais estratégica para a segurança nacional.

A investigação da PF representa uma oportunidade para que a Justiça, o Congresso e o governo procedam à profissionalização da Abin, conforme previsto na legislação do Sistema Brasileiro de Inteligência. Os problemas da Abin são estruturais em decorrência da tradição política do Brasil. Nela, como no restante da América Latina, serviço de inteligência serve apenas para produzir dossiês contra adversários políticos. Há, ainda, a indesejável mistura de inteligência militar com inteligência civil. Também é problemática a solução encontrada pelos presidentes, à esquerda e à direita, nas últimas décadas: entregar o comando da atividade de inteligência a delegados da Polícia Federal. Delegados e agentes da PF trabalham para investigar crimes; não têm treinamento e disposição para privilegiar a atividade de inteligência de estado. São funções distintas, mas ainda incompreendidas pelos principais atores políticos de Brasília.

Em vez de encarar a Abin como um problema político, ou, pior, como uma oportunidade para criar um serviço de inteligência particular, os presidentes da República, sob fiscalização real do Congresso, precisam trabalhar para fortalecer as carreiras civis dos oficiais de inteligência, livrando a agência da influência da PF e de militares. Sem um compromisso verdadeiro com o papel institucional da agência, a Abin seguirá produzindo mais escândalos do que inteligência.

Atualização às 9h57 de 21 de outubro de 2023: a reportagem foi alterada para incluir detalhes sobre quem tinha acesso à ferramenta First Mile na Abin. Também se acrescentaram informações acerca da disputa entre agentes da PF leais a Bolsonaro e oficiais de carreira da Abin.

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