Especial: os erros do governo no combate à ômicron

Brenno Grillo
Publicada em 13/01/2022 às 19:30
Jair Bolsonaro e Marcelo Queiroga durante solenidade no último dia 8, em Brasília. Foto: Agif/Folhapress

Quase dois anos após o começo da pandemia, o Brasil enfrenta o avanço da ômicron sob a liderança errática do Ministério da Saúde. A estratégia aparente do governo federal resume-se a vacinar os brasileiros adultos. De resto, repetem-se erros, sobram improvisos, falta planejamento, promove-se o negacionismo e premia-se a negligência de uma equipe despreparada para lidar com a mais grave crise sanitária da história do Brasil - uma equipe sob a forte influência de um presidente que sabota quaisquer chances de sucesso.

Apesar das incertezas inerentes ao desenrolar de uma pandemia, é altamente provável que a ômicron, por sua incomum capacidade de transmissão e infecção, mesmo entre vacinados, atinja números expressivos de casos neste mês. Seja pela imunização das pessoas, seja pela natureza da variante, seja por uma combinação das duas coisas, esses casos tendem a ser menos severos - individualmente. A soma deles, porém, tem a capacidade de saturar um sistema de saúde debilitado por dois anos de pandemia. A verdade é que não se sabe o que vai acontecer nas próximas semanas. Assim como é verdade que o governo federal não colabora para que saibamos - ou para que o impacto seja o menor possível.

Não há dados, gestão, interesse político ou planejamento unificado para atendimento, tratamento e imunização eficientes.

Diante desse quadro preocupante, o Bastidor listou alguns dos principais erros do governo de Jair Bolsonaro e do Ministério da Saúde de Marcelo Queiroga. Confira:

(Sem) Protocolo de atendimento

Até agora não há um protocolo unificado do Ministério da Saúde para enfrentar a pandemia. As diretrizes aprovadas - sob muita tormenta política - pelo Conitec estão no gabinete do secretário Hélio Angotti Neto, que estica a corda da burocracia e assim atrasa resoluções que podem embasar eventuais punições a integrantes do chamado "Ministério da Saúde Paralelo".

O grupo foi o responsável pela defesa do Kit Covid, com cloroquina e outras mentiras, que vitimou o norte do país e foi alvo de discussões na CPI da Pandemia. "Não existe uma política razoavelmente científica e técnica no enfrentamento da pandemia e na Ômicron foi apenas uma repetição de erros. Agora, as coisas só estão tudo mais trágicas e evidentes", resume o infectologista Alexandre Naime.

Os documentos aprovados pela Conitec em 7 de dezembro do ano passado trazem parâmetros para atendimento de pacientes. Em relação à medicação, os especialistas condenam o uso do Kit Covid e sugerem, conforme aprovado pela Anvisa, o uso de medicamentos com anticorpos monoclonais - que são aqueles que ajudam a aumentar a produção de anticorpos usados no enfrentamento de determinada doença.

No trato dos pacientes, a Conitec sugere o uso de anticoagulantes (que impedem a formação de aglomerados de sangue gelatinosos ou semissólidos na corrente sanguínea) com tromboembolismo (que acontece quando um coágulo prejudica o fluxo sanguíneo venoso), corticosteroides (anti-inflamatórios) em pacientes com oxigênio suplementar e antimicrobianos caso surjam infecções.

Esboço de testagem

A testagem no Brasil é um fracasso desde o início da pandemia, muito antes de Queiroga chegar à Saúde. Não houve campanha de conscientização, compra efetiva de testes ou insumos e qualquer estratégia para realização dos exames.

Isso fez com que muitos exames adquiridos nem sequer fossem usados antes de perderem a validade. Em novembro de 2020, 6,8 milhões de testes estavam parados no aeroporto de Guarulhos e o Ministério da Saúde dizia não ter informações sobre o assunto.

Mais de um ano depois, em setembro de 2021, esses testes e outros 31 insumos utilizados no combate à pandemia foram incinerados sem terem sido usados porque o prazo de validade expirara. O prejuízo foi de R$ 80 milhões.

Meses antes, em maio, a Saúde admitia ao Ministério Público Federal que 2,3 milhões de exames (custaram R$ 42 cada um) ficaram inutilizáveis por não terem sido usados dentro do período definido pelo fabricante. O resultado dessa confusão é subnotificação e falta de dados para adotar medidas mais eficazes para controlar o coronavírus.

O Ministério da Saúde adquiriu até agora pouco mais de 57 milhões de testes de Covid-19, ao custo de R$ 1,6 bilhão. Três tipos são disponibilizados pelo governo brasileiro:

  1. PCR-RT: feito a partir de uma amostra das secreções respiratórias que são analisadas para diagnosticar a presença ou não do coronavírus;
  2. Teste rápido imunológico: aparelho de plástico que colhe o sangue e usa reagentes para detectar o coronavírus. O resultado, a depender dos anticorpos detectados (IgG e IgM), pode significar que a pessoa está ou foi recentemente infectada (IgM), ou que ela teve contato com o vírus no passado (IgG);
  3. Teste rápido de antígeno (teste do cotonete): usado para detectar a proteína viral do SARS-CoV-2. Em caso positivo, a infecção está ativa.

Para tentar reduzir o problema da falta de exames, a pasta comprou, ainda em agosto de 2021, mais 60 milhões de testes rápidos de antígeno da Fiocruz ao custo de R$ 1,2 bilhão. Parte desse acordo já foi cumprido, com 45 milhões de testes entregues.

Mas faltava a solicitação da Saúde para que os exames restantes fossem liberados. A pasta também prometeu há poucos dias que distribuirá 13 milhões de testes na próximas duas semanas, de um total de 28,2 milhões previsto para ser disponibilizado até o fim deste mês. Ao Bastidor, a Fiocruz não confirma que fará a entrega no prazo definido pelo ministro, dizendo que "os 15 milhões de testes restantes do compromisso serão entregues entre janeiro e março".

Apesar dessas compras (mesmo as indefinidas), a política a ser adotada - quase dois anos após o início da pandemia - ainda está sendo estudada. A inclinação atual da Saúde é relacionada "às especificidades dos autotestes", afirma o Ministério de Queiroga em nota ao Bastidor - os autotestes (que têm sido distribuídos gratuitamente à população nos EUA e em Portugal) são exames comprados em farmácias e feitos sem ajuda médica ou ambulatorial.

Já a Anvisa deixa o assunto com Queiroga ao dizer que "as regras atuais da Agência só permitem o registro de autoteste de doenças infectocontagiosas passíveis de notificação compulsória, como a Covid-19, caso haja uma política de saúde pública e estratégia de ação estabelecida pelo Ministério da Saúde" - o Ministério enviou hoje (13) à agência um pedido formal para aprovação do uso dos autotestes.

O cardiologista e gestor de saúde Eduardo Figueiredo explica que esse pode ser um caminho. Mas ressalta que a falta de uma política detalhada e unificada de testagem e disponibilização de testes ganha relevância em um país continental.

"A desinformação gera pânico, que resulta em caos", diz o médico. Um exemplo disso foi relatado pela Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica, que representa empresas responsáveis por mais de 65% dos exames privados do país.

A Abramed alertou que a testagem contra Covid-19 aumentou 98% na comparação entre as semanas do Natal (20 a 26 de dezembro) e do pós-Réveillon (3 e 8 de janeiro), quando foram comprados mais de 240 mil exames em laboratórios privados brasileiros. Por isso, pediu "a utilização criteriosa de testes para evitar risco de redução de oferta de exames para detecção da Covid-19".

Figueiredo diz estranhar a ausência de um comando composto por técnicos para centralizar as informações sobre a pandemia e organizá-las para oferecer diretrizes. Esse grupo foi criado pelo Ministério da Saúde "logo nos primeiros indícios" (a data exata não foi detalhada) do surgimento da ômicron, que foi registrado em 25 de novembro de 2021.

"O que mais impacta é desinformação, que gera pânico e resulta em caos. E o presidente contribui. Já a informação precisa ser uniforme, com um comando passando dados confiáveis e já testados. O Ministério da Saúde foi atacado há um mês e até hoje o sistema não funciona. Eles não têm Plano B. Os dados que temos hoje são os que o consórcio de imprensa coleta junto às secretarias estaduais de Saúde. E ainda bem. Sem eles não teríamos nada", analisa o cardiologista.

Esse apagão de dados foi alvo de representação de parlamentares ao TCU. O senador Alessandro Vieira, os deputados Tabata Amaral e Felipe Rigoni, além do secretário de Educação do Rio, Renan Ferreirinha, pediram que seja investigada a inércia da pasta ao tentar restabelecer seus sistemas após o hackeamento que sofreu.

Há ainda um pedido do PT ao Supremo, que será relatado por Gilmar Mendes, para que seja apurada a responsabilidade do Ministério da Saúde na demora para restabelecer os sistemas. Em outra frente, cinco senadores desconfiam que houve sabotagem pela própria equipe de Queiroga e ouvirão especialistas para tentar validar a hipótese.

O ministério diz que restabelecerá totalmente seus sistemas até sexta-feira (14), mas Acre, Bahia, Pará, Rondônia, Santa Catarina e São Paulo afirmam que têm enfrentado problemas com o sistema da Saúde.

Negacionismo atrapalha vacinação

O Brasil é um país que tem boa taxa de vacinação, com sete nações à sua frente quando o quesito é proporção da população vacinada. Até agora, segundo dados do Our World in Data, foram aplicadas 338 milhões de doses, com 68,2% (145 milhões) de brasileiros totalmente vacinados.

Tudo isso foi conquistado apesar de vários problemas, que vão desde estrutura para atendimento, passando pela ausência de oferta do imunizante e chegando até a falta de informação fornecida às equipes médicas. Mas um dos principais entraves foi Bolsonaro atacando as vacinas desde que a possibilidade de compra delas surgiu.

O presidente diz duvidar da eficácia dos imunizantes e também dos dados - mesmo com as quedas no número de mortos. O capitão reformado já relacionou a vacinação com a aids e até zombou que reações adversas transformariam pessoas em "jacaré".

A médica e gestora em saúde Roberta Grabert afirma que a desinformação sobre o tema tem sido um dos principais entraves, porque atrasa uma política colocando-a sob dúvidas inexistentes. Ela reforça que a testagem prévia dessas vacinas é requisito básico para aprovação em qualquer uma das principais agências sanitárias do mundo.

Essa deferência à ciência, continua a médica, não ocorreu no Brasil: "Não ouviram a classe médica, virologistas, infectologistas e não usaram os dados do SUS".

Mais recentemente, o Ministério da Saúde atrasou como pôde o início da vacinação infantil, politizando o tema na esteira de Jair Bolsonaro - enquanto os reais motivos eram orçamentários, como mostrou o Bastidor.

Grabert afirma que essa demora no início da vacinação custará um "preço alto", porque a imunidade tem um tempo de maturação - o primeiro lote de vacinas infantis (com 1,2 milhão de doses) só chegou ao Brasil hoje (13), após mais de um mês de discussão dispensável sobre a necessidade de vacinar crianças de 5 a 11 anos.

Estudo do Departamento de Imunizações da Sociedade de Pediatria de São Paulo com base em dados da Saúde mostra que menores de 19 anos responderam por 34 mil internações e 2,5 mil mortes, com crianças acima de 5 anos e adolescentes representando cerca de 50% do total de mortos.

A pesquisa conduzida por Marco Aurélio Sáfadi e Renato de Ávila Kfouri destaca ainda como a proporção de crianças e adolescentes mortos por Covid-19 no Brasil é muito mais alta do que a registrada em outros países: desde o início da pandemia, a taxa de letalidade entre jovens brasileiros foi de 7%, enquanto nos EUA foi de 0,5%. 

"Uma análise das taxas de mortalidade (mortes por milhão) atribuídas à Covid-19 até novembro de 2021, mostra taxas de aproximadamente 41 mortes por milhão entre crianças e adolescentes no Brasil. Quando comparamos com outros países, em período similar, encontramos taxas de 11 mortes por milhão nos EUA e 4,5 mortes por milhão no Reino Unido (RU), mais uma vez destacando uma carga de doença com maior gravidade neste grupo etário no nosso país", afirmam os pesquisadores. 

Máscaras, isolamento e "liberdade"

Sempre que sobrava algum tempo, o governo lutava contra o uso de máscaras. O tema era como um plano B para sair da monotonia de criticar vacinas. Hoje, Marcelo Queiroga aparece usando a proteção em entrevistas à imprensa, mas já defendeu que o uso não deveria ser obrigatório durante a pandemia; justificou dizendo que "tem de ser um ato de conscientização".

Seu Ministério, inclusive, estudou a possibilidade de flexibilizar o uso de máscaras - com vários governadores e prefeitos aproveitando a deixa para suavizar as regras e tentar agradar o eleitorado. Lucas Zambon, diretor científico do Instituto Brasileiro para Segurança do Paciente, afirma que a política da Saúde é não ter planejamento estruturado para enfrentar a Covid-19.

"Não há resposta do governo federal para atingir realmente a população. O que existe é o caos instalado por discursos e posicionamentos que, apesar de não terem caráter de política, ganham ares de obrigatoriedade frente à população justamente e na ausência de diretriz oficial", diz.

O diretor explica que esses sinais contraditórios aumentam a potência da chamada "fadiga de alarme", que acontece quando as pessoas já foram colocadas sob tanto estresse por determinado tempo e em seguidas ocasiões que abandonam comportamentos importantes para a proteção delas.

Segundo Zambon, como as pessoas "tendem a esquecer, banalizar ou até cansar" de ações pela repetição, é preciso frisar inúmeras vezes que determinados atos precisam ser mantidos em nome de uma política de Saúde.

Só que isso nunca será possível enquanto o chefe de Queiroga reclamar constantemente sobre o uso da máscara (em prol da suposta liberdade) e proibir o uso da proteção em reuniões com ministros. O ministro da Saúde até embarcou nesse discurso ao dizer, em 7 de dezembro de 2021, achar "melhor perder a vida do que perder a liberdade" - no mesmo dia o Brasil registrava mais 278 mortes as quase 616 mil desde o início da pandemia.

Um médico ouvido pelo Bastidor sob condição de anonimato por temer represálias classifica essa liberdade defendida por Bolsonaro e seus aliados como "anarquia" em que se "joga paixão numa frase para convencer apaixonados". "Isso não tem relação alguma com liberdade individual. O contrato social na pandemia é diferente. É mais rígido."

O mesmo roteiro negacionista vale para quarentena ou qualquer medida restritiva. Ideias são sempre rechaçadas pelo governo sob o argumento de que haverá impacto na economia, principalmente no turismo - aqui vale mencionar os surtos de Covid-19 em cruzeiros que percorriam o litoral brasileiro, fazendo com que novas viagens fossem suspensas.

A Saúde, inclusive, divulgou recentemente diretriz rejeitando o "passaporte da vacina" e reduzindo o prazo de isolamento exigido de assintomáticos e pessoas com capacidade para produzir anticorpos contra o coronavírus (como os vacinados), mas que apresentam sintomas leves de Covid-19.

A nova regra ainda permite que quem não tenha sintomas da doença faça um exame no quinto dia de isolamento para saber se pode encerrar a quarentena - mesmo sendo contra as medidas de isolamento, Queiroga cumpriu todo o procedimento exigido pelos EUA para infectados pelo coronavírus ao custo estimado aos cofres brasileiros entre R$ 22 mil e R$ 31 mil pela hospedagem.

Apesar da resistência do governo, a imposição de barreiras sanitárias "não seria uma medida inútil nem estúpida", segundo Zambon. O médico justifica essa necessidade destacando que o Brasil recebe muitos viajantes de países com taxas inferiores de vacinação, fazendo com que novas cepas circulem pelo país.

"Fechamos as portas, mas deixamos as janelas abertas. Ventou dentro de casa", finalizou o diretor científico.

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