A tortura factual de Toffoli
A decisão do ministro Dias Toffoli que anulou as provas da Odebrecht contém erros rudimentares de informação e omissões significativas de fatos imprescindíveis à compreensão sóbria do acordo de leniência do grupo empresarial. A peça (leia abaixo versão anotada) é rica em adjetivos e pobre em técnica - e lógica.
Toffoli resolveu classificar como "imprestáveis" todas as evidências entregues pela Odebrecht. Fez isso em razão do teor das mensagens da Vaza Jato e por meio do entendimento de que o acordo foi fechado sem que procuradores e juízes obedecessem aos trâmites legais necessários.
O ministro - assim como Ricardo Lewandowski, seu antecessor nesse caso, e Cristiano Zanin, advogado que moveu o processo em favor de Lula e que por ele foi agora nomeado ao Supremo - interpreta os diálogos roubados pelo hacker Walter Delgatti sob a pior luz possível aos procuradores, delegados e juízes. Não há qualquer esforço de contextualizar as conversas e buscar elementos que as esclareçam. Apenas se atribui vilania onde ela pode ser encaixada.
A leitura simplória dos trechos provoca erros rudimentares. E facilita a profusão de ilações que assomam na decisão. As mensagens tornam-se o veículo pelo qual Toffoli adentra o acordo de leniência da Odebrecht - e nelas se perde, ao ignorar a abundância de fatos e processos que documentam o caso. Tudo escandaliza a quem está condicionado, pela propaganda política dominante no país, a se escandalizar.
Conversas rotineiras entre procuradores e seus pares nos Estados Unidos e na Suíça viram prova de que as autoridades brasileiras estavam a serviço do FBI, "armando" contra um "inocente" e "remetendo recursos" do Brasil para outros países, como se o acordo de leniência da Odebrecht envolvesse autonomamente três países. É o tipo de afirmação abilolada que se encontra em blogs dominados por propaganda, que se aproveitam da ignorância do público acerca de acordos de colaboração e de tratados bilaterais de cooperação para disseminar patranhas ideológicas.
O complexo acordo de leniência da Odebrecht está documentado no Supremo Tribunal Federal, na Procuradoria-Geral da República, na Justiça Federal do Paraná e no Ministério da Justiça. Ele envolveu negociações intensas entre procuradores brasileiros e advogados do grupo. Dezenas de autoridades participaram das tratativas; outras tantas nos acordos da Odebrecht nos Estados Unidos e na Suíça. O gabinete do ministro Teori Zavascki supervisionou os trâmites. Quando ele morreu, a ministra Cármen Lúcia prosseguiu com os trabalhos. O Supremo homologou o acordo. A Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal chancelou as tratativas.
Mediante o acordo, a empresa e os colaboradores entregaram voluntariamente um volume imenso de evidências, sobretudo a íntegra dos sistemas do departamento de propinas da Odebrecht. Gravaram depoimentos em vídeo. Fizeram tudo isso porque, em etapas antecedentes, os investigadores no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos haviam obtido, especialmente, as contas secretas de propina transnacional do grupo - a Odebrecht chegou a comprar um banco para gerir as transações. A quantidade de evidências de crimes, e a escala deles, era inédita, até mesmo para os padrões brasileiros. A negociação do acordo transcorre nesse contexto.
Toffoli, assim como Lewandowski, cita mensagens em que procuradores mencionam conversas com colegas no FBI e transporte de HDs da Odebrecht em sacolas de supermercado para concluir que o acordo seguiu à margem da lei. Quem lê a decisão do ministro e desconhece o caso supõe que um dos maiores grupos empresariais da América Latina resolveu aparecer um dia no Ministério Público com evidências de crimes multinacionais numa sacola de supermercado. E que os procuradores combinaram tudo isso por mensagens, sob ordens do juiz do caso. Não se trata de um assalto aos fatos e à história. É uma agressão ao bom senso e à capacidade cognitiva da plateia.
Os sistemas de propina da Odebrecht, já parcialmente obtidos pela Polícia Federal e pelos procuradores suíços naquele momento, foram entregues pelos colaboradores. Aqueles que manejavam os pagamentos confirmaram o teor das informações dos sistemas e esclareceram operações desconhecidas. Ao contrário do que diz o ministro Toffoli, o MP brasileiro pediu à Suíça, via Ministério da Justiça, em 2016, o mesmo material - e o recebeu, em 2017, também por intermédio do Ministério da Justiça. O acervo passou por perícia do MPF e da PF. Os laudos estão à disposição de Toffoli, assim como sempre estiveram à disposição de Lewandowski.
Também estava à disposição de Toffoli um parecer da Corregedoria do MPF acerca da conduta dos procuradores na condução do acordo com a Odebrecht. A pedido de Lewandowski, a PGR instaurou uma apuração e analisou as questões levantadas pelo ministro. Segundo o parecer, não houve qualquer irregularidade nas tratativas - ao contrário. Toffoli, porém, nem sequer cita o parecer; é como se essa evidência não existisse, assim como os fatos presentes nos autos que envolveram a negociação do acordo. Para tomar uma decisão tão severa, é de se esperar que o ministro e sua equipe tivessem analisado e sopesado todas as peças, enfrentando-as factual e juridicamente. Seria igualmente prudente que uma decisão dessa magnitude fosse discutida antes no plenário do Supremo.
A própria participação de Toffoli como juiz desse processo é questionável. Ele seria imparcial para julgar esse caso? Toffoli foi implicado na Lava Jato em consequência do acordo da Odebrecht. Emails apreendidos num computador de Marcelo Odebrecht indicam pagamentos do grupo a Toffoli, quando este era advogado-Geral da União no segundo governo de Lula. Ao depor em juízo sobre os emails, Marcelo Odebrecht confirmou o teor deles e indicou que os pagamentos descritos nas mensagens dariam-se por meio de um advogado próximo a Toffoli. O grupo de trabalho da Lava Jato na PGR pediu a abertura de investigação para elucidar o caso, mas Augusto Aras a derrubou, pouco antes de matar as forças-tarefas. Planilhas da OAS registram pagamentos para a reforma de uma casa do ministro em Brasília. Léo Pinheiro, que tocava a empreiteira, contaria o caso em sua delação, mas o tópico foi arquivado sem investigação pela então procuradora-Geral Raquel Dodge.
Talvez por quase ter sido alvo das investigações, Toffoli tenha recorrido a hipérboles em maiúsculas e negrito em sua decisão. Falou, entre outras coisas, em "PAU DE ARARA DO SÉCULO XXI", a fim de buscar "provas" (as aspas são do ministro) contra inocentes - o principal deles sendo o presidente Lula. Foi tudo uma "armação", disse o ministro. Em maiúsculas que são dele, afirmou: "SE UTILIZOU UM COVER-UP DE COMBATE À CORRUPÇÃO, COM O INTUITO DE LEVAR UM LÍDER POLÍTICO ÀS GRADES, COM PARCIALIDADE E, EM CONLUIO, FORJANDO-SE “PROVAS”. Como discutir contra caixa alta?
O ministro não se limitou a anular as provas da Odebrecht. Ele validou provas inquestionavelmente ilícitas - as mensagens da Vaza Jato - e deu publicidade a elas como meio de prova para desqualificar o acordo da Odebrecht e determinar a investigação da conduta de todas as autoridades envolvidas na colaboração. Toffoli talvez não saiba, mas o número de funcionários públicos que participaram das tratativas passava, tranquilamente, da casa das dezenas. É bastante gente para investigar, inclusive gente que trabalha e trabalhava no Supremo. O ministro estipulou que a AGU e o TCU investiguem os responsáveis, o que foge à competência desses órgãos. (Poucos minutos após a decisão, a AGU anunciou uma "força-tarefa" para investigar a Lava Jato; Flávio Dino disse que a Polícia Federal entraria no caso.)
É impossível analisar a decisão de Toffoli somente como peça jurídica. Ela se insere num movimento político e empresarial que visa a anular não apenas as provas dos casos de corrupção apresentados ao Brasil e ao mundo na década passada; visa a anular os fatos, reescrever a história recente do país e assegurar que nada parecido aconteça tão cedo. Retomar o controle dos fatos - estabelecer o controle da história a ser contada sobre a Lava Jato - significa manter o controle político do país na oligarquia que sempre mandou nele, do jeito que sempre mandou nele. No Brasil de 2023, o acordo da Odebrecht, e tudo que ele significa para quem voltou ao poder ou quem dele nunca saiu, não pode mais existir. É preciso anular a memória dele.
Reino Unido derruba esquema de oligarcas russos que usavam criptomoedas para burlar sanções.
Leia MaisDemissão do diretor de marketing Eduardo Tracanella cria crise interna após comunicado implausível
Leia MaisInterCement entra com pedido de recuperação judicial para reestruturar dívidas de R$ 14,2 bilhões
Leia MaisMuito além dos assédios
Caixa move ações contra Pedro Guimarães por enriquecimento ilícito e improbidade à frente do banco
Leia MaisEm pedido a Flávio Dino, AGU defende mais interesses do Congresso que do governo sobre emendas
Leia MaisSérgio Rial escapa de punição da CVM pelo caso Americanas devido ao 2 a 2 no julgamento
Leia MaisSTJ mantém posição contra a empresa, e a favor da CSN, sobre indenização de 5 bilhões de reais
Leia MaisAgrogalaxy apresenta plano de recuperação judicial e afirma ter demitido cerca de 800 empregados
Leia MaisDepoimento de presidente da Loterj deixa claro que é impossível verificar apostas por estado
Leia MaisAneel tem maioria para definir prazo de 180 dias para aporte em distribuidoras de energia
Leia MaisTJGO decide nesta terça-feira se bloqueia bens de empresário especialista em fugir de credores
Leia MaisAneel pode analisar hoje caso que impõe aportes de 10 bilhões de reais em distribuidoras de energia
Leia MaisKassio conclui que TJ de Alagoas está apto a julgar recursos da falência da usina Laginha
Leia MaisAo mesmo tempo que tenta barrar Lei das Bets no Supremo, CNC atua pela liberação dos cassinos
Leia MaisMinistro libera o pagamento de emendas parlamentares com condicionantes que ajudam governo
Leia Mais